Agricultura

Experiência do parasurf brasileiro traz radiografia da luta de mulheres com deficiência contra a dupla discriminação

Mulheres participantes do evento apoiado pelo Ministério do Esporte compartilharam impressões e vitórias, e refletiram sobre a importância do surf na superação de barreiras

30/08/2023 16:48
Experiência do parasurf brasileiro traz radiografia da luta de mulheres com deficiência contra a dupla discriminação
Foto: Divulgação/MEsp

 

A seletiva brasileira do Mundial de Parasurf, realizada em Cabedelo, na Paraíba, coroou a insistência da modalidade feminina. Após uma semana da realização do CBSurf Cabedelo Parasurf, o balanço da contribuição do evento para uma cena esportiva mais inclusiva, diversificada e igualitária passa necessariamente por uma análise fina sobre a participação das mulheres no evento realizado pela Confederação Brasileira de Surf (CBSurf), Prefeitura de Cabedelo (PB) e Ministério do Esporte.

“Passado o evento, pudemos ver o quanto foi importante e gratificante para o Ministério do Esporte ter apoiado a competição. O surf, pelo desafio que o mar representa, amplifica a nossa percepção sobre a capacidade realizadora de cada competidor como algo que nos faz refletir sobre o nosso próprio conceito de limite”, avaliou a ministra do Esporte, Ana Moser. Ela também celebrou a o aumento da participação feminina e as disputas simbólicas entre pessoas com deficiência intelectual.

Mesmo com a desistência de duas participantes às vésperas da realização do campeonato, a catarinense Mariana Brusnelo (PS-VI1) e Bruna Malavasi (autista), de São Paulo, a organização celebrou o dobro do número de mulheres inscritas (oito), em relação à etapa de Maracaípe (PE) (quatro), em 2022.

Primeira brasileira surfista profissional no país, a vice-presidente da CBSurf, Brigitte Meyer, revelou que atua nos dias de hoje com o mesmo empenho dos tempos em que lutava pela profissionalização do surf feminino nos anos 1980, em favor do reconhecimento e da elevação do parasurf nos dias atuais.

"Ao longo dos anos, os tabus sobre pessoas com deficiência e as mulheres vêm caindo, mas é algo que ainda precisa de muito trabalho. Especialmente no que diz respeito às mulheres, precisamos estar constantemente alerta, porque, ao mesmo tempo que nos sentimos superbem-vindas no mar, ainda temos que lutar pelo direito e oportunidade de ocupar um espaço", avaliou a vice-presidente.

Além de espaço para mostrar habilidade nas ondas, as mulheres do surf já encontram na sua entidade máxima o direito de participar da gestão garantido em estatuto, com a obrigatoriedade de ao menos uma vice-presidente, bem como a presença de árbitras nos campeonatos. “Estamos catando meninas que surfam pelo Brasil e dizendo que existe um lugar”, afirmou Brigitte.

O Ministério do Esporte apoia a garantia da presença da participação das mulheres em todas as instâncias do esporte, por meio de suas políticas, para todas as modalidades.

Formada no circuito de surf pernambucano e apaixonada pelo esporte, Marília Lacerda, 27 anos, foi quem marcou a presença feminina na arbitragem do CBSurf Cabedelo Parasurf.

“É um começo, e um começo muito importante. Aqui sou a única, mas já existem outras mulheres que estão na CBSurf desde o ano passado, quando ingressei para compor esse quadro técnico. Também é muito significativo porque, da mesma forma que eu via as mulheres atletas e pensava que poderia ser uma, acredito que outras podem olhar pra mim e saber que podem estar aqui também, se quiserem”, apontou Marília, que arbitrou seu segundo campeonato nacional.

As parasurfistas do Brasil

De uma família de surfistas, Vitória Thompson, 16 anos, participou pela primeira vez de um campeonato nacional. Acompanhada da irmã Mainá, 39 anos, que foi tri-campeã brasileira de longboard profissional (2007/2008/2009), Vitória nasceu cercada de incentivo e sob uma regra interna da casa. "Lá quem não surfa fica de castigo [risos]", revelou.

O ambiente saudável em família e a introdução do surf em sua vida desde cedo na Praia do Canto, no Rio de Janeiro, parece ter tirado a atleta do alcance da discriminação.

"Costumo sofrer por outras pessoas. Graças a Deus eu não sofro isso [discriminação] e também minha família está sempre me apoiando. Acho que esse apoio é fundamental independentemente de quem é ou não, atleta", comentou Victoria, que compete na classe (PS-P1) e procurou superar a tensão da estreia em um campeonato nacional pela sensação de descoberta e a vontade de se divertir.

Mais acostumada com grandes eventos, a surfista Malu Mendes, 30 anos, já viveu até festa de chegada com desfile em carro de Corpo de Bombeiros, no Guarujá, após conquistar a primeira etapa do Circuito Mundial Profissional de Parasurf, em maio deste ano.

“Estou muito feliz vendo o surf adaptado crescer. Temos uma grande estrada pra pavimentar, mas estamos trabalhando. Tenho certeza de que o paradesporto vai dar muito retorno para o Brasil”, comentou Malu, que compete na classe PS-P2 e, no âmbito pessoal, lidera e pode conquistar o título do Circuito Mundial em setembro, na terceira e última etapa de Ocean Side, na Califórnia (EUA).

No plano coletivo, a atleta faz sua parte, atuando em projeto social e dando aulas de surf em Baía Formosa (RN) no Projeto Swell, que é contemplado pela Lei de Incentivo ao Esporte (LIE), regulamentada em 2006 por decreto do então presidente Lula.

Além das vitórias, Malu atua para deixar um legado de inclusão. “É surf, mas também tem matemática, português, costura, artes, meio ambiente e desenvolvimento de psicomotricidade, tudo no contraturno escolar, e já estamos com cinco autistas para iniciar um projeto para pessoas com deficiência”, revelou.

A magia do contato com o mar

Foi em Santa Catarina, num projeto social de surf acessível, o Surfistas Sem Fronteiras – também contemplado pela Lei de Incentivo ao Esporte – que a então finalista em física, Vera Aguilar Quaresma, encontrou apoio e companhia para aprender a surfar, após o acidente que provocou a amputação de parte da perna e um processo de recuperação que levou dois anos.

Hoje, com 42 anos, ela explica por que o surf é seu esporte preferido. “Já fiz pilates, natação, mas o contato com o mar é muito especial. Me permite uma agilidade e liberdade de movimentação que não tenho no chão. Renova minha alma”, comenta a competidora da classe PS-K.

A alegria de participar do seu primeiro campeonato nacional, em Cabedelo, não apagou a lembrança da dupla discriminação sofrida no início, quando recebia gritos e era até atrapalhada por surfistas-homens no outside do mar forte da praia de Moçambique.

“Chegava à praia já sofrendo pressão dos homens. Pensavam que eu ia me afogar ou dar algum tipo de trabalho. ‘Cuidado aí!’, gritavam, achando que eu não sabia surfar por eu ser mulher e ter uma deficiência. Tive paciência, mostrei que era capaz de pegar as minhas ondas, e passaram a respeitar meu espaço”, lembrou a surfista, que fez questão de competir em Cabedelo para que o Brasil tenha representante em mais uma categoria.

Mesmo percebendo que a quantidade de meninas surfando aumentou em Moçambique, Vera tem o sonho de ver as garotas sobre as pranchas na mesma quantidade dos meninos. O desejo é compartilhado pela carioca Monique Oliveira, 36, que foi da Barra da Tijuca a Intermares para tentar a vaga no Mundial.

“Há meninas que chegam pra mim e dizem que estão com vontade de ‘pegar onda’, porque veem que eu vivo no mar. E eu fico muito feliz, porque o meu objetivo no surf adaptado é trazer mais mulheres pro surf feminino”, explicou Monique. Logo ao nascer, a atleta sofreu com falta de oxigênio, tendo sua fala e coordenação motora afetadas por paralisia cerebral. Ela compete na categoria (PS-P2), sendo a primeira campeã brasileira na categoria em 2022 e campeã mundial em 2017.

Revelando que foi com o surf que adquiriu sua autonomia, Monique é uma terapeuta integrativa e estudante de fisioterapia que se prepara para atuar na área de pilates. É apoiada pelo Instituto Renacer, pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, e foi dona na maior nota, a Best Wave, do CBSurf Cabedelo Parasurf, com 8.5 pontos. Quando a nota foi anunciada, vibrou com seu guia Bruno Monteiro, “o Cepa”, ainda no mar.

“Eu percebi toda a energia das pessoas dentro d´água. Foi sensacional, me senti muito forte e confiante. Estou muito feliz pelo apoio e pela oportunidade nesta etapa da minha vida”, revelou Monique.

Cidadãos ativos

Vice-campeã mundial no ano passado na classe PS-S1, a paraibana Tiana Dantas estava em casa para tentar a classificação para Huntington Beach, e para colaborar com a mudança do olhar da sociedade sobre as mulheres.

“Tem muita menina espalhada pelo Brasil surfando e querendo participar, mas, além das dificuldades financeiras por passagens, locomoção que todo mundo tem, por ser mulher prevalece o lado negativo da superproteção e por ser deficiente se torna ainda maior. Pro homem é sinônimo da força e superação, pra mulher, é só a ideia da fragilidade”, comentou.

Ciente de que sua presença e participação em competições internacionais motivam outras meninas, Tiana tem planos para criar sua própria escolinha de base de surf adaptado para transpor a todos os aspectos do dia a dia, a habilidade e a ampliação de visão de mundo adquirida na modalidade.

“Nosso papel hoje é muito importante, de mostrar a elas que é possível e estimular essa mulherada, porque beneficia toda a sociedade. Imagina você ter pessoas paradas acreditando que não tem condições de trabalhar, mas que se redescobrem como pessoas independentes e produtivas à sua maneira.”

Jade e a revolução

Se alguém qualificar as palavras de Tiana como ‘otimismo sem base na realidade’, vai precisar rever o conceito a partir da surfista Jade Lie 18 anos, que possui Síndrome de Down. Se o surf abre portas, uma delas foi a do avião, para a família embarcar pela primeira vez rumo ao Nordeste.

“A gente não tinha como vir, daí fizemos uma rifa. A galera de São Sebastião (SP) ajudou, e conseguimos todo o dinheiro para estar aqui. Foi uma coisa bonita e emocionante”, revelou a mãe da Jane, Ana Tanaka, que percebeu o tamanho da representatividade de uma menina com Síndrome de Down sendo feliz no mundo do surf e convidada a participar de eventos, como o I Simpósio de Surf Feminino da cidade, no fim de setembro. E assim, é Jade que tem mobilizado e ampliado a vivência familiar.

“Ela entrou e já pegou uma ‘ondona’ chegando até a areia. No fim ela caiu, se assustou ao ralar um pouco o joelho e desistiu, mas, quando ela viu que o pessoal estava curtindo, ela voltou e foi se divertir mais um pouquinho. Pegou mais umas ondas”, lembrou Ana, que vai guardar na memória os momentos em que o público e os locutores do evento vibraram com sua filha na água.

Da descoberta do surf por meio do irmão, Pedro Tanaka – falecido no ano de 2021 – aos treinos semanais com o padrasto Joca Puertas, ambos surfistas, já são três anos no esporte. Jade Lie competiu numa classe especial para pessoas com Síndrome de Down, ainda não reconhecida pela Associação Internacional de Surf (ISA), mas bancada pela política inclusiva atual da CBSurf para participação no CBSurf Cabedelo Parasurf, que incluiu ainda autistas e pessoas surdas.

“Tudo o que eles fazem é uma conquista tão boa! Acho que a gente deveria trazer isso pro nosso dia a dia, para valorizar nosso esforço, cada conquista nossa. E sair do que é comum e estável, colocar movimento, porque a vida é movimento, mudança, fluxo, desbravar com intensidade. E a Jade faz a gente perceber isso”, concluiu.

Ao fim do evento, Malu Mendes, Tiana Dantas, Vera Quaresma e Monique Oliveira conquistaram a vaga na equipe brasileira para o Mundial na Califórnia. Vitória Thompson e Jade Lie seguem encantando e influenciando o aumento de praticantes de surf, em especial as praticantes mulheres e mulheres com deficiência.

Conheça as classes do parasurf certificadas pela ISA:

Stand 1 (PS-S1) : qualquer surfista stand-up com amputação de membro superior ou deficiência comparável. Esta aula inclui também aquele surfista com estatura reduzida.

Stand 2 (PS-S2) : qualquer surfista de stand-up com amputação abaixo do joelho ou deficiência comparável.

Stand 3 (PS-S3) : qualquer surfista de stand-up com amputação acima do joelho ou deficiência comparável.

Prone 1 (PS-P1) : qualquer atleta que surfe deitado na prancha e não necessite de ajuda/auxílio para remar, pegar a onda e subir na prancha.

Prone 2 (PS-P2) : qualquer atleta que surfa deitado na prancha e PRECISA de ajuda para remar, pegar a onda e subir na prancha.

Joelho (PS-K): qualquer surfista que surfe de joelhos com amputação acima do joelho, amputação dupla abaixo do joelho ou deficiência comparável.

Sit/Waveski (PS-Sit) : qualquer surfista que surfe sit-up com remo e não necessite de assistência.

Deficiência Visual 2 (PS-VI2) : qualquer surfista com deficiência visual.

Por: Ministério do Esporte (MEsp)

Link: https://www.gov.br/esporte/pt-br/noticias-e-conteudos/esporte/experiencia-do-parasurf-brasileiro-traz-radiografia-da-luta-feminina-e-das-mulheres-com-deficiencia-contra-a-dupla-discriminacao
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