Direito à saúde: uso da Cannabis medicinal em favelas é debatido por coletivos e organizações dos territórios
A Cannabis e seus derivados têm se mostrado como opções efetivas no tratamento de diversas questões de saúde e quadros médicos como epilepsia, dores crônicas como fibromialgia, artrite e esclerose múltipla
A Coordenação de Cooperação Social da Fiocruz , a partir do projeto de Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis em Centros Urbanos, promoveu na última terça-feira (28/8) a roda de conversa Favelas, Cannabis Medicinal e Direito à Saúde . O evento reuniu, na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), um grupo composto por profissionais da área de saúde, alunos e graduados do curso de psicologia, mães de crianças atípicas, militantes de movimentos sociais, lideranças locais dos territórios de favelas, coletivos e servidores públicos para discutir sobre o uso da Cannabis medicinal, tema pertinente nos últimos anos.
O encontro foi realizado a partir da articulação do projeto com o Coletivo SUStenta Cannabis, a Organização Mulheres de Atitude (OMA), o Instituto Kelvin Johnson/Projeto Marias, Educap Alemão, Conselho Comunitário de Manguinhos, CGI Manguinhos; e o Núcleo de Estimulação Estrela de Maria.
A Cannabis e seus derivados têm se mostrado como opções efetivas no tratamento de diversas questões de saúde e quadros médicos como epilepsia, dores crônicas como fibromialgia, artrite e esclerose múltipla, náusea e vômito em pacientes em tratamento de quimioterapia, transtorno de ansiedade, depressão e esquizofrenia. A partir de evidências recentes, também é possível destacar o uso da cannabis medicinal como indicação para o Transtorno do Espectro Autista (TEA), Parkinson, Alzheimer, Síndrome de Tourette, Doença de Crohn, carcinoma, encefalopatia, paralisia cerebral e transtorno de desenvolvimento.
No ano de 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) autorizou o uso medicinal de produtos à base de canabidiol (CDB) e, em 2019, permitiu a venda de medicamentos à base de THC, mediante prescrição médica. A cannabis medicinal pode ser utilizada através do óleo, cápsulas e extratos da planta, no entanto, o acesso é limitado devido ao alto custo dos produtos.
A cannabis medicinal ainda não está disponível para distribuição gratuita aos pacientes, através de sua incorporação no Sistema único de Saúde (SUS). O acesso restrito devido ao preço dos medicamentos limita principalmente a realização do tratamento pelas famílias que não possuem condições financeiras para realizar a compra. Na favela, esse recorte é ainda mais destacado devido às condições econômicas e sociais da população residente nessas localidades.
Pensado como medida de enfrentamento dessas desigualdades, o Núcleo de Estimulação Estrela de Maria (NEEM) foi criado em junho de 2021, no Complexo do Alemão, e realiza o acolhimento de famílias atípicas em favelas, a partir do debate sobre direitos humanos e sobre o uso da Cannabis medicinal. O NEEM doa os medicamentos à base de Cannabis para a população de territórios socioambientalmente vulnerabilizados que precisam do tratamento. Em dois anos de atuação do núcleo, cerca de 400 mães já foram atendidas. O projeto, atualmente, está presente em 114 favelas do estado do Rio de Janeiro, com destaque para as Zonas Norte e Oeste e conta com uma equipe de 32 médicos.
“Essa causa nasce a partir da necessidade da minha filha autista. Toda vez que eu ia no neurologista, cada consulta era 1.000 reais, 800 reais. Passavam remédios controlados e eu não queria isso. Os ativistas da favela levantaram uma vaquinha para eu ir no neurologista, eu descobri o autismo na pandemia. A gente tá na fila do hospital federal da UFRJ até hoje, a Maria vai fazer cinco anos. Eu fui para a linha da medicina integrativa e tive ótimos ganhos, comecei a pesquisar artigos, a traduzir sem saber outro idioma, e cheguei na cannabis e falei: é isso que eu quero para Maria” , conta Rafaela França, fundadora do NEEM, sobre o contexto de nascimento do Núcleo que carrega o nome de sua filha.
Rafaela reforça a necessidade de expansão do debate sobre o uso da Cannabis medicinal para população e profissionais da saúde, desde os Agentes Comunitários de Saúde até aos médicos das unidades, como estratégia de promoção de saúde a partir de uma medicina individualizada, que promova atenção e acompanhamento a partir do uso de novos tratamentos.
“Todo mundo sabe dos desafios impostos pelo tráfico dentro das favelas. Trabalhar com maconha hoje na favela é você sentar com o ilícito e com o lícito. É você dialogar no meio, conversar que é medicinal. Não é fácil, ainda mais para uma mulher. Eu acredito que a nossa autonomia vem como mãe, sendo mãe de uma criança atípica e trazendo qualidade de vida para outras crianças e para outras pessoas. Isso tem legitimado meu trabalho” , pontuou Rafaela sobre as dificuldades do trabalho realizado pelo projeto que já distribuiu mais de 1 milhão e meio de óleos extraídos da Cannabis para as famílias atípicas das favelas.
O NEEM realiza o acolhimento e apoio psicológico às crianças e familiares. As crianças que chegam até o Núcleo passam por consultas gratuitas com médicos voluntários, que fazem a prescrição da Cannabis medicinal, a partir da avaliação dos quadros médicos de cada caso. Após esse acompanhamento, o Núcleo auxilia a família na apresentação da receita à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para receber a licença que autoriza a importação do remédio.
As ações vão desde doações de medicamentos à base de canabidiol até a realização de programas de educação e conscientização sobre os benefícios da cannabis para a saúde e estrutura social, incluindo oficinas para profissionais da área da saúde que queiram conhecer o projeto. “Eu fiz uma promessa que nenhuma criança da favela ia passar o que eu passei com a Maria e eu tenho cumprido, sendo que a gente precisa de ajuda também”, finalizou Rafaela França.
O Espaço Democrático de União, Convivência, Aprendizagem e Prevenção (EDUCAP) , parceiro do NEEM, é uma ONG comunitária também localizada no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro. O EDUCAP atua na promoção de projetos com foco na saúde e educação dos moradores da favela.
Com o objetivo de contribuir com a promoção da cidadania para os moradores do Complexo de Favelas do Alemão e demais contextos populares, a ONG presta acolhimentos às demandas sociais, estimulando a autonomia, a participação comunitária e o desenvolvendo de metodologias em cooperação com as políticas públicas nas áreas de educação, saúde, empregabilidade, lazer e direitos humanos.
Lúcia Cabral, educadora, presidente e fundadora da ONG EDUCAP, ressalta o movimento realizado pelo projeto para acionar a rede local de saúde e potencializar o debate sobre a Cannabis dos espaços locais, dos Colegiados Gestores das unidades do território. “Ter acesso ao óleo é direito do ser humano, dialogar sobre ele também. Mediar com o território o tema “maconha” é muito difícil, foi uma construção bem pensada. É questão de entender que o território de favela é um território criminalizado pelo uso dos entorpecentes, das drogas. A maconha é considerada uma droga, então realmente foi desafiador, mas o importante foi essa rede que se construiu a partir do projeto” .
Durante a troca, retirada de dúvidas e diálogo com mães de crianças atípicas presentes no evento, Lúcia ressaltou: “A gente também tem que começar a retroceder e estudar um pouco da nossa história ancestral para entender que a erva é medicinal e faz parte da nossa vida, por isso que a gente precisa ter esse debate. Esse espaço aqui é de extrema importância” .
A parceria entre o Núcleo de Estimulação Estrela de Maria (NEEM), Espaço Democrático de União, Convivência, Aprendizagem e Prevenção (EDUCAP) e a Fundação Redwood Brasil tem como principal objetivo cuidar da saúde de populações periféricas através da cannabis medicinal, contribuindo para promover qualidade de vida na favela. O projeto interage com os territórios a partir de uma construção coletiva de uma rede de ações a partir da cannabis, considerando as propriedades medicinais, terapêuticas e sociais.
Também esteve presente no evento o coletivo antiproibicionista SUStenta Cannabis , que tem um histórico de facilitador do acesso a consultas médicas e jurídicas para pacientes que desejam tentar tratamentos alternativos com o Canabidiol (CBD). O coletivo trabalha há 8 anos atendendo a população de até 4 salários mínimos por família, através da orientação em relação à busca do óleo, oferecendo a consulta e o atendimento de forma gratuita.
“Isso aqui mudou bastante a minha vida como médico. Eu estava desesperado com a saúde no país e a Cannabis deu uma outra energia para buscar um tipo de tratamento menos agressivo para os pacientes” , destacou Nathan Kamliot, integrante do coletivo SUStenta Cannabis.
“Tem uma epidemia de drogas lícitas no país, uma epidemia grave. Não é a maconha que é um problema central. O paciente que chega buscando a maconha terapêutica já passou por várias coisas e não se importa se é maconha. Ele precisa de algo que realmente o ajude. A primeira ajuda que a gente tem visto é o desmame de outras medicações, tem que ser cauteloso, é todo um processo, a autonomia do paciente para se conhecer. Hoje em dia se terceiriza a saúde à vontade, são coisas básicas de saúde e as pessoas não têm conhecimento, não têm acesso” , comentou o médico.
O SUStenta Cannabis realiza consultas coletivas, com a presença de familiares e pacientes em formato de rodas de conversa com as pessoas e representações que chegam até o espaço de atuação do grupo. “A escuta é muito importante. Hoje em dia não tem escuta na saúde, raramente tem. O médico dedica cinco minutos para preencher uma receita, é um absurdo uma coisa dessa” , comentou Nathan.
De acordo com os médicos presentes no encontro, o uso da cannabis medicinal deve ser considerado a partir de uma avaliação e consulta com um médico que esteja não só familiarizado com o quadro médico da criança ou do adulto mas também com o produto, considerando os benefícios, possíveis efeitos colaterais e riscos específicos para cada paciente. É algo individualizado que requer acompanhamento e monitoramento pois cada organismo responde ao tratamento com suas especificidades, de forma gradativa até que a evolução e melhora aconteçam.
As redes de apoio reforçam, a cada dia, a necessidade da construção coletiva de estratégias na luta por políticas públicas que garantam o direito à saúde para toda população, independente de sua localidade, gênero, raça, idade ou condição médica.
Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis em Centros Urbanos
O projeto se propõe a atuar em territórios socioambientalmente vulnerabilizados em centros urbanos, tendo como experiência piloto o território ampliado de Manguinhos. Articulado e participativo, visa a construção de conhecimento e contribuir para a Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis a partir de iniciativas de assessoramento e de advocacy de arranjos de Governança Territorial Democrática com foco em políticas públicas saudáveis e territorializadas, que potencializem o enfrentamento das desigualdades sociais e iniquidades em saúde presentes nestes territórios (Complexo de Manguinhos e Bacia Hidrográfica do Canal do Cunha, no Rio de Janeiro). Entre suas atividades está a promoção de debates virtuais na Plataforma de Comunicação Cidades em Movimento .
Por: Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
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