Em carta ao presidente Lula, Funai pede veto integral do PL do marco temporal
O PL nº 2.903/2023 foi aprovado pelo Senado Federal em 27 de setembro, e agora aguarda a decisão do presidente da república quanto à sanção ou veto
Em carta enviada ao presidente Lula, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) manifestou-se pelo veto integral do Projeto de Lei nº 2.903/2023, que inclui a tese do marco temporal no ordenamento jurídico brasileiro, juntamente com outros dispositivos que ameaçam os direitos indígenas. A manifestação foi formalizada por meio de ofício assinado pela presidenta da Funai, Joenia Wapichana, que seguiu com uma nota técnica da Procuradoria Federal Especializada da Funai (PFE/Funai) apresentando os fundamentos jurídicos para o veto integral do projeto de lei.
Após passar pelo Congresso Nacional e receber críticas e rejeição dos povos indígenas, da sociedade civil, órgãos e entidades de defesa dos direitos dos povos indígenas, o PL nº 2.903/2023 foi aprovado pelo Senado Federal em 27 de setembro, e agora aguarda a decisão do presidente da república quanto à sanção ou veto.
Marco Temporal
A tese jurídica do marco temporal condiciona a demarcação das terras tradicionais dos povos indígenas à sua efetiva ocupação na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Essa tese ignora o longo histórico de esbulho possessório e violência praticada contra os povos indígenas, acarretando a expulsão de seus territórios, além de violar os direitos indígenas previstos na própria Constituição Federal e em tratados internacionais dos quais o Estado brasileiro é signatário.
De acordo com a Constituição Federal, as terras indígenas são bens da União e de usufruto exclusivo dos povos indígenas. Elas são bens inalienáveis e indisponíveis, ou seja, não podem ser objeto de compra, venda, doação ou qualquer outro tipo de negócio, sendo nulos e extintos todos os atos que permitam sua ocupação, domínio ou posse por não indígenas. Outro ponto importante é o fato de que os direitos dos povos indígenas sobre suas terras são imprescritíveis. Desse modo, a Ordem Constitucional vigente reafirma o Princípio do Indigenato, que significa que os direitos dos povos originários sobre suas terras antecedem a própria formação do Estado brasileiro.
Julgamento no STF
A tese do marco temporal também foi discutida pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), havendo sido rejeitada no dia 21 de setembro por maioria folgada dos membros da corte. No contexto do Recurso Extraordinário – RE nº 1017365 , 9 ministros votaram contra e 2 votaram a favor da tese. Assim, ficou declarada a inconstitucionalidade do marco temporal, sendo o ato de demarcação meramente declaratório de um direito preexistente.
“Hoje é dia de comemorar a vitória dos povos indígenas contra o marco temporal. Nós temos muitos desafios pela frente, mas é uma luta a cada dia. Uma vitória a cada dia. Nós acreditamos na Justiça, na Justiça do STF para dar essa segurança jurídica aos direitos constitucionais dos povos indígenas, cumprir o seu dever pela constitucionalidade e dar esperança a esse povo que tem sofrido há muitos anos com intimidações e pressões” , avaliou Joenia naquela ocasião .
Segundo o procurador-chefe da Funai, Matheus Oliveira, “o julgamento de ontem foi muito importante, pois o recurso teve origem na Funai, foi provido e também implicou a manifestação do STF contrária ao marco temporal” . “Esse caso concreto que envolve a terra indígena Ibirama-La Klãnô, do povo Xokleng, servirá de paradigma para o julgamento de casos semelhantes” , completou a procuradora federal Carolina Santos.
Rejeição do PL nº 2.903/2023
De acordo com o ofício da Funai dirigido ao presidente Lula, a eventual sanção do PL nº 2.903/2023 ocasionaria prejuízos significativos para a proteção das terras indígenas brasileiras e para os direitos indígenas de forma geral. Além disso, o projeto pretende cristalizar o marco temporal na legislação, em que pese o fato de o STF haver reconhecido amplamente a inconstitucionalidade dessa tese.
“O PL nº 2.903/2023 tem uma orientação integracionista, contrária ao novo modelo de política indigenista proposto pela Constituição de 1988, que se opõe ao direito à diversidade, trazendo óbices à sobrevivência de modos de vida e cosmologias culturalmente diferenciadas que constituem grande riqueza da nação brasileira” , afirma o ofício.
O ofício ainda alerta que a aprovação do projeto afronta tratados internacionais dos quais o Estado brasileiro é signatário, violando o direito dos povos indígenas à consulta livre, prévia e informada , bem como a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), segundo a qual “o direito de recuperação dos territórios pelos indígenas permanece indefinidamente no tempo, enquanto perdurarem esses laços espirituais ou culturais” . Portanto, a sanção do projeto de lei poderá levar o Brasil à responsabilização em foros internacionais.
Através de nota publicada ontem , dia 19 de outubro, o Ministério Público Federal (MPF) também reafirmou seu posicionamento contra o PL nº 2.903/2023, o qual “é inconstitucional e inconvencional, razão pela qual deve ser vetado” . Conforme o MPF já havia alertado em outras ocasiões, a aprovação do marco temporal não poderia ocorrer por meio de lei ordinária e, além disso, a matéria não poderia sequer ser objeto de Proposta de Emenda Constitucional (PEC), visto que fere direitos e garantias fundamentais, cláusulas constitucionais pétreas.
Em maio deste ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) também reiterava “sua preocupação com o possível reconhecimento jurídico da tese conhecida como marco temporal” , a qual, segundo a CIDH, “contraria os padrões universais e interamericanos de direitos humanos, colocando em risco a própria existência dos povos indígenas no país” . Para o órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), a aplicação do marco temporal violaria disposições da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e da Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas .
Por: Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai)
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