Defensoras de direitos humanos apontam caminhos para triunfo da justiça social no Brasil
Isadora Brandão e Débora Diniz refletem sobre atualidades da Declaração Universal dos Direitos Humanos no ano em que o marco humanitário completa 75 anos
Desde 1948, a humanidade dispõe de um documento que estabelece parâmetros que norteiam a luta pela dignidade humana no enfretamento ao preconceito, ao ódio, e às violências propagadas por sistemas de opressão que visam ao controle social de corpos excluídos e vulnerabilizados. No próximo dia 10 de dezembro, este marco humanitário adotado em Paris pela Organização das Nações Unidas (ONU) completará 75 anos e se mantém como principal inspiração global para a promoção de uma cultura de paz: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
Ao longo de 30 artigos, a publicação orienta nações e populações a seguirem princípios relacionados à proteção universal dos direitos humanos. Já na abertura, a Declaração une todos os habitantes da Terra em “uma família humana”, apontado para a importância da justiça social, das liberdades fundamentais e da fraternidade entre os povos. São princípios dignos e notáveis que, no entanto, ainda encontram dificuldades em se tornarem nítidos em todas as camadas da população brasileira e mundial.
Na perspectiva do tempo, o Brasil de 2023 evidencia contradições que revelam construções sociais diversas e plurais. Se de um lado aparecem narrativas separatistas e violações de direitos contra o diferente e o diverso; de outro, a pluralidade brasileira busca se unir contra o patriarcado, o machismo, o sexismo, a LGBTfobia e a intolerância religiosa – entre tantas outras formas de exclusão social.
Tais palavras e termos, quando lidos ou ditos, despertam sensações e emoções distintas em cada pessoa. De onde nascem tais contradições? O que o medo do diferente significa para alguém que, diante da incompreensão, sente-se autorizado a levantar-se em violência contra o próximo? Diante desse abismo cognitivo e em busca de respostas, o portal de notícias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) conversou com duas defensoras de direitos humanos sobre caminhos pelos quais percorreu e percorre a sociedade brasileira na busca pela garantia de direitos.
Duas mulheres do Brasil
Na mesa de diálogo, a secretária nacional de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos, Isadora Brandão; e a antropóloga, professora e pesquisadora Débora Diniz traçam desafios e oportunidades para o triunfo da justiça social no Brasil. De um lado, o governo federal; de outro, a sociedade civil, respectivamente. Uma mulher em cada lugar: são duas mulheres do Brasil distintas em suas condições étnicas que refletem sobre os desafios para que a DUDH seja efetiva.
Débora Diniz contextualiza o momento no qual o documento prestes a fazer 75 anos nasceu. “A Declaração foi criada em um momento da humanidade de assombro das atrocidades, das violações de direitos humanos e daquilo que o humano seria capaz de fazer um contra os outros. É um documento político que tem uma pretensão ética de enunciação de valores, cultura, proteção e de reconhecimento de valores fundamentais para garantia de uma vida justa”, aponta a antropóloga.
Sobra a atualidade da Declaração, a pesquisadora comenta que, dentro do Sistema ONU, as atualizações são permanentes, a exemplo de convenções de enfrentamento ao racismo, ao machismo, pelos direitos das crianças e das pessoas com deficiência. “Esse conjunto principiológico sofre atualizações permanentes no campo normativo. Mas o que falta para que, na prática, rompamos com raízes brutais como o sistema de opressões enraizado no patriarcado, no racismo, na colonialidade da forma da vida e do poder? Esse é um processo lento”, indica a professora, que reconhece os desafios atuais para a efetivação do marco universal.
Além da normativa
Nessa linha de pensamento, Débora Diniz reflete que um caminho próspero para a efetivação da DUDH não se encontra apenas em uma esfera normativa, a exemplo de leis que criminalizam condutas avessas à preservação da cidadania. “Temos enunciações ativas na Constituição sobre os direitos humanos fundamentais. Portanto, é necessária uma permanente anunciação de que ‘direitos humanos’ não é uma abstração. Não há outra forma de vida possível na coletividade e na diversidade e nas nossas diferenças que não pela enunciação de uma linguagem ética e política em comum”, vislumbra.
Para tanto, ela afirma que é imprescindível uma contínua pedagogia dos direitos humanos para brasileiros e brasileiras. “Não estou confundindo com uma escolarização, mas a pedagogia dos direitos humanos [se ergueria] contra os fanatismos como uma pedagogia permanente de que as soluções para nossas diferenças, que são as desigualdades, seria um marco ético compartilhado”, sugere Débora Diniz.
Uma constante pedagogia do respeito ao próximo aliada à compreensão de quem somos, de onde viemos e como a sociedade é formada além do ensino formal, portanto, nascem como instrumentos possíveis para a garantia dos direitos humanos. É a partir desse panorama que, para a experiência brasileira, a Declaração se ergue como a mais alta inspiração de cidadã e cidadãos contra o temor, o terror e o horror.
Desafios contemporâneos
A esse diálogo, a secretária Isadora Brandão acrescenta que o conceito de humanidade deve ser observado com especial atenção. “O principal desafio está em alargamos as nossas concepções de humanidade. Ao longo da história, temos observado, que a proclamação formal e universalista de direitos tem convivido com a negação de humanidade à maioria da população do globo”, pontua a gestora.
Nessa perspectiva, Isadora ressalta o fato de que os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade existentes na Declaração não impediram, por exemplo, opressões sofridas por diversos países ao longo do último século. “Enquanto diversas nações do mundo se empenhavam em condenar os horrores do nazismo, por exemplo, cerca de um terço da população mundial ainda vivia sob o jugo do colonialismo e habitava territórios não soberanos”, contextualiza.
“Por qual motivo temos falhado em tornar os direitos humanos uma realidade para as maiorias oprimidas? Porque ainda é forte a naturalização da hierarquização de humanidades produzida pelo racismo em suas interseccionalidades com o cisheterosexismo, o capacitismo, o racismo, o machismo, entre outros”, elenca Isadora Brandão em consonância com o pensamento de Débora Diniz.
Pedagogia dos saberes: um convite à reflexão sobre raízes históricas
Diante do preconceito e das violências, as defensoras de direitos humanos destacam uma ética pedagógica que possa promover o pensamento crítico como alternativa para enfrentar as mazelas do viver do povo brasileiro. Ou seja, definir o que são direitos humanos passa por uma reapropriação de palavras que foram assaltadas pelo sistema opressor de controle social.
Desmistificando percepções equivocadas, Débora é quase silenciosa e ao mesmo tempo enfática quando diz que não há ironia no fato de mulheres negras serem a maioria do país e, ainda assim, serem expostas a vulnerabilidades sociais permanentes. "Não tem ironia. O opressor depende do oprimido”, esclarece. “Os poderes opressores e os poderes históricos de opressão são tão entranhados em estruturas de poder e estruturas de extermínio e castigo – como é desde o Direito Penal, como são as armas, como a ideia de força, como a ideia de mando, como a desigualdade salarial, isso tudo são estruturas de mandonismo, que são históricas e têm raízes, inclusive no Estado”, descortina a professora.
“Nenhuma mulher sozinha será capaz de fazer essa transformação. Nenhum conjunto de mulheres vai ser capaz de fazer essas transformações, inclusive, sem os homens, que estão no poder. Então, não há ironia: é assim que se constitui a própria forma do poder. Você precisa do oprimido para sua reprodução. E as mulheres se arriscam quando se rebelam contra os sistemas de opressão. Mas o risco é uma condição para a possibilidade de transformação”, expõe Débora Diniz.
Nessa perspectiva histórica, Isadora Brandão resgata as origens globais de uma cultura que não considera a pluralidade e a diversidade como formas de convivência comum para o bem viver. “O eurocentrismo nos faz acreditar que os direitos humanos são um produto exclusivo do Ocidente ou um elemento inerente à cultura ocidental. Ocorre que os europeus construíram o seu sistema utópico a partir do contato com sociedades não-ocidentais e da expropriação de conhecimentos dos povos colonizados”, inicia a gestora.
“Portanto, é preciso reconhecer que as experiências asiáticas, africanas, indígenas, indianas, ocorridas em diferentes períodos históricos, contribuíram para a construção do imaginário e da cultura universal de direitos humanos”, elenca a representante do MDHC.
Em busca de uma ética pedagógica
Ao observar outros exemplos, Isadora Brandão cita um documento produzido por povos do Oeste africano, em pleno século 13, para estabelecer os princípios da vida em comunidade, que previa os direitos das mulheres à participação política e que repudiava a violência contra as mulheres: é o caso da Carta Mandinga.
Ela era a Constituição do antigo Império do Mali, que foi transmitida ao longo do tempo por meio da oralidade, e reconhecida como patrimônio da humanidade somente em 2009 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), oito séculos depois de seu nascimento.
“A Carta carrega uma série de valores que podem ser associados ao que o Ocidente convencionou chamar de direitos humanos”, provoca Isadora Brandão em uma reflexão sobre contribuições não-ocidentais que, por vezes, tentam ser apagadas da memória global.
“Precisamos aprender a ouvir as vozes das mulheres africanas e diaspóricas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, ciganas, transexuais, homossexuais, com deficiência, entre tantas, situadas na periferia do mundo e reconhecê-las como vocalizadoras legítimas de projetos de emancipação feminina. Isso implica refutar visões paternalistas que retratam essas mulheres do Sul Global, empobrecidas e racializadas, como sem liberdade, não conhecedoras de seus direitos e necessitadas de ajuda do Norte para atingirem um nível adequado de desenvolvimento”, aponta Brandão.
Assombro e escuta
A fim de que a temática de direitos humanos alcance o sentido universal proposto é necessário, no entanto, lidar com o contraditório. Débora Diniz considera que o exercício do pensamento e a criticidade despontam como condições para que os afetos assumam o palco da compreensão humana no sentido de despertar sentidos afirmados nesta mesa de diálogo. Entretanto, ainda que pareça, a palavra afeto não assume apenas o sentido do cuidado e da beleza.
“Qual o lugar do afeto? Há afetos que são negativos. O ódio é um afeto negativo, porque é um afeto destruidor. Quais são os afetos que permitem o encontro? Um afeto fundamental para a cultura de direitos humanos é se assombrar, ou seja, não naturalizar práticas brutais como a violência, como o racismo, como dizimar povos e nações como ocorre nas crises humanitárias. O assombro é uma pedagogia fundamental, pois a partir dele se pode estranhar a si próprio e a naturalização de (in)certas práticas”, aponta a professora e pesquisadora Débora Diniz.
Nessa mudança de sentidos, Débora segue a reflexão sobre um segundo passo fundamental nessa construção: a escuta. “Também é preciso aprender a escutar. Os poderes opressores, como o patriarca e o racista, eles escutam muito pouco. Porque a palavra é um atributo do mando: é quem fala, e escuta muito mal. Aprender a escutar é uma pedagogia de desenraizamento dos sistemas de opressão”, frisa a antropóloga.
Para Débora, assombro e escuta são elementos que desaguariam na possibilidade de atingir uma reviravolta na percepção. “Quando mudamos a percepção, a apreensão sobre a dor do outro, é quando podemos começar a construir alianças entre nossas mais profundas diversidades para a garantia dos direitos humanos”, ressalta.
Reconhecimento e pertencimento cultural
Soma-se aos desafios da contemporaneidade, da busca por saberes e por uma ética pedagógica a importância do reconhecimento cultural como modo de o Brasil se aproximar da efetivação de uma justiça social. Nesse sentido, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, costuma falar do tempo como uma referência na qual passado, presente e futuro devem guiar as pessoas não de modo isolado, mas integrado.
Ao ser questionada sobre a questão temporal, Isadora Brandão reforça que a ideia de tempo assume o sentido de simultaneidade de acordo com as raízes ancestrais africanas. “Na cultura yourubana, que faz parte do rico e diverso legado civilizatório dos povos africanos que vieram forçadamente para o Brasil, o tempo é síncrono. Ou seja, os acontecimentos se sucedem ao mesmo tempo na dimensão dos ancestrais e dos vivos. Se pensarmos a partir dessa perspectiva cosmológica, o passado é algo em disputa, é uma construção do presente. O passado não é um dado estático, mas algo que se constitui junto com o presente e como reflexo da dialética do presente”, aponta a gestora.
E é justamente nessa compreensão histórica que habitam mazelas como racismo, indica Isadora. “Isso tudo tem a ver com a denegação do nosso passado, isto é, da nossa herança e raiz negro-africana e indígena. Como já apontaram importantes intelectuais negros brasileiros, o grande custo-Brasil é o racismo. É ele que nos impede de ser a nação do futuro, ao inviabilizar o aproveitamento do nosso maior capital e da maior riqueza que podemos ofertar ao mundo, que é a nossa diversidade cultural e humana”, aponta a Isadora Brandão.
Resiliência criativa
Finalizando esse encontro, a pesquisadora Débora Diniz acredita que uma possível revolução brasileira, compreendendo as raízes históricas expostas neste conteúdo, será protagonizada por mulheres e pessoas de gênero diverso, justamente o segmento social que vive tal “deslocamento sobre os poderes opressores”.
Outro ponto que se une à cultura na visão da antropóloga e que nasce como elemento possível para tais transformações são as manifestações artísticas. “Arte é toda forma de provocação dos sistemas de percepção e linguagens de expressão que não é da palavra da ordem, da palavra do mando. Não tenho dúvidas de que [uma possível revolução] será pela poética de novas formas de imaginação sobre o mundo desde os corpos subalternizados”, reflete Débora.
“Gosto de trabalhar com uma palavra que é quase uma categoria de pensamento e de sobrevivência. Nós temos uma resiliência criativa. Nós vivemos sobre a colonialidade do poder, sob o patriarcado, o racismo. As nossas raízes coloniais estão entranhadas nos regimes do sistema de opressão. Mas quando olhamos para a poesia, para a arte, para os movimentos de música, para os movimentos sociais, para as formas de convivência comunitária – nós temos uma resiliência, esse conceito de sobreviver a esse caos, sempre criativa. Ela não é passiva: ela é transformadora”, acredita a professora.
Para a antropóloga, o Brasil poderá assumir um papel mundial, inclusive, de exemplo para outras nações por meio da circulação dessa criatividade referida. “Temos o histórico de não sucumbir e, ao contrário, sobreviver criativamente na poética da palavra, da música, da arte, do encontro. Essa é uma das formas pelas quais o Brasil pode se comunicar com o mundo, revirando o mapa de pensamento a partir dos afetos e dos encontros”, finaliza a defensora de direitos humanos.
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Por: Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania
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