Brasil ganha sua primeira coleção biológica de mamíferos silvestres reservatórios
Acervo é o primeiro do Brasil com foco especial em mamíferos que atuam como reservatórios de parasitos
Coleções biológicas são um importante patrimônio da humanidade, preservando exemplares de microrganismos, plantas e animais que contribuíram para descobertas científicas e que continuam disponíveis como material testemunho e para apoiar o avanço do conhecimento. Responsável pela guarda de coleções de grande importância para o conhecimento da biodiversidade, que preservam a memória da saúde e da ciência e que ajudam a compreender a evolução dos agentes infecciosos e das doenças ao longo do tempo, o Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) acaba de concluir a institucionalização de mais um importante acervo: a Coleção Integrada de Mamíferos Silvestres Reservatórios (Colmasto) . A Coleção passa a figurar junto a outras de alta relevância histórica, como a de Febre Amarela, Entomológica e de Triatomíneos. Conheça as coleções do IOC .
O acervo é o primeiro do Brasil com foco especial em mamíferos que atuam como reservatórios de parasitos e microrganismos causadores de doenças humanas, tais como Chagas, leishmanioses, esquistossomose, leptospirose e hantaviroses, entre outras. Ao todo, são aproximadamente 12 mil espécimes, de todas as regiões do país, incluindo exemplares de todos os estados, com exceção, até o momento, de Roraima e Amapá.
“É uma coleção zoológica com o olhar da saúde e da vigilância. Todos os espécimes depositados passaram por procedimentos para diagnosticar infecções. Além dos dados taxonômicos, biológicos e geográficos, dispomos de informação sobre os patógenos identificados em cada um desses animais”, afirma o fundador e curador da Coleção, Paulo D’Andrea, chefe substituto do Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres Reservatórios, que abriga o acervo, e atual vice-diretor de Ensino, Informação e Comunicação do IOC.
“Temos espécimes de mamíferos de todos os biomas brasileiros, reunidos ao longo de quase 40 anos de coletas. É um acervo de memória de agravos, que acaba tendo importância para vigilância e prevenção, porque contribui para compreender surtos que ocorreram no passado e que podem ocorrer no futuro”, acrescenta o curador-adjunto da Coleção, Roberto Vilela, pesquisador do Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres Reservatórios.
A construção do acervo vem sendo realizada ao longo dos anos, com base em coletas realizadas durante expedições em áreas de surtos ou com transmissão frequente de zoonoses (doenças transmitidas de animais para seres humanos). Também integram o acervo espécimes encaminhados por órgãos de saúde para diagnóstico taxonômico (procedimento para identificação da espécie dos animais), uma vez que o Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres Reservatórios atua como Serviço de Referência em Taxonomia de Reservatórios Silvestres junto ao Ministério da Saúde.
Compõem o acervo mais de 10 mil roedores, de 37 gêneros diferentes, e mais de mil marsupiais, incluindo espécimes de 12 gêneros. Espécimes de morcegos também fazem parte do conjunto, contemplando 28 gêneros. Há ainda exemplares de mamíferos de médio e grande porte, como primatas, quatis e porcos do mato.
A institucionalização oficial da Coleção – primeira dedicada a mamíferos no âmbito da Fiocruz – foi publicado em portaria no dia 29 de setembro, a partir de decisão da Vice-Presidência de Pesquisa e Coleções Biológicas da Fiocruz, após parecer favorável da Câmara Técnica de Coleções Biológicas, considerando a relevância do acervo e o cumprimento de requisitos técnicos.
Assim, o acervo passa a integrar o conjunto de Coleções Biológicas Institucionais da Fiocruz, que prestam serviços para a ciência e a saúde através da preservação de exemplares da biodiversidade disponíveis para consulta pública, identificação de espécies, fornecimento de recursos para biotecnologia, capacitação de profissionais e atividades de popularização da ciência. O IOC é responsável por 60% do total de Coleções da Fundação.
“A institucionalização reconhece que esse acervo é importante e garante o apoio para a preservação, além de promover a visibilidade e a cooperação com as demais coleções biológicas institucionais”, ressalta o coordenador de Coleções Biológicas da Fiocruz, Marcelo Pelajo.
Relevância científica
Espécimes da coleção contribuíram para estudos de alto impacto na ciência e na saúde pública. Entre estes estão trabalhos que apontaram gambás e espécies de roedores reservatórios do parasito Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, em áreas com surtos de transmissão vetorial, no Ceará, e por via oral por consumo de caldo de cana, em Santa Catarina, e açaí, no Pará.
Também se destacam a caracterização das espécies de roedores do gênero Oligoryzomys confirmadas como reservatórios dos hantavírus Anajatuba (identificado no Nordeste) e Castelo dos Sonhos (encontrado no Norte e no Centro-Oeste) e a identificação dos reservatórios do hantavírus do genótipo Juquitiba, no Rio de Janeiro, após o primeiro caso humano registrado no estado. Foi ainda descrito o primeiro roedor do gênero Akodon reservatório para hantavírus do genótipo Jaborá em Santa Catarina.
Mamíferos identificados na Coleção contribuíram para o conhecimento sobre os reservatórios silvestres envolvidos no ciclo de transmissão silvestre da bactéria causadora da leptospirose e de arenavirus no estado do Acre e das bactérias causadoras da bartonelose e da febre Q na Mata Atlântica. Diversos hospedeiros de helmintos também foram caracterizados nas pesquisas, incluindo trabalhos que identificaram novas espécies destes parasitos. Destacam-se ainda estudos que caracterizaram o papel de roedores semiaquáticos como reservatórios do Schistosoma mansoni, verme causador da esquistossomose.
O curador da Coleção ressalta que o acervo contribui ainda para ampliar o conhecimento sobre a diversidade, taxonomia e ecologia de mamíferos, especialmente de roedores e marsupiais, que têm papel importante na transmissão de diversas zoonoses. “O acervo da coleção é caracterizado essencialmente por espécies que vivem em áreas de interface entre a mata, áreas rurais e peridomiciliares nas periferias das cidades. São áreas geralmente degradadas, onde há menor diversidade, porque muitas espécies não sobrevivem a desequilíbrios ambientais. Porém, as espécies que se adaptam a estas áreas degradadas podem apresentar alta abundância, como certas espécies de roedores e marsupiais, e geralmente são competentes para a transmissão de diversas zoonoses”, explica Paulo.
Criterioso processo de catalogação
O procedimento rigoroso para a identificação das espécies de mamíferos é um ponto importante do acervo. Para caracterizar as espécies, os pesquisadores aplicam a taxonomia integrativa, combinando análise morfológica e morfométrica (que avalia características físicas externas e dos ossos cranianos dos animais), com estudo do cariótipo (baseado na contagem do número de cromossomos) e, quando necessário, sequenciamento genético do DNA. Nos registros da Coleção, são inseridos também diferentes dados biológicos sobre os espécimes depositados e informações sobre o local de coleta.
“Os animais são identificados em nível de espécie, com processo auditado de taxonomia, com emissão de laudo ou certificado de identificação taxonômica. Além disso, é importante destacar que as coletas e análises seguem todos os parâmetros de biossegurança e de ética no manejo e eutanásia dos animais”, pontua Paulo.
O acervo conta com diferentes tipos de materiais, incluindo peles taxidermizadas, esqueletos e espécimes preservados em álcool. Amostras de tecidos como fígado e músculo, que são para sequenciamento de DNA para identificação taxonômica, e células em suspensão, usadas nos estudos citogenéticos, também fazem parte da coleção.
Formação do acervo
Os momentos iniciais do acervo envolvem a biografia de um grande nome da ciência brasileira: Luís Rey. O acervo começou a ser reunido na década de 1980, durante pesquisas que visavam identificar reservatórios da esquistossomose em Sumidouro, na Região Serrana do Rio de Janeiro. O estudo fazia parte do projeto liderado pelo parasitologista, considerado uma referência mundial no estudo do agravo. Na época, Rey havia assumido a chefia do Laboratório de Biologia e Controle da Esquistossomose do IOC após longo exílio no exterior ao longo da ditadura militar. Link documentário
“Rey tinha o objetivo de investigar os reservatórios naturais do Schistossoma mansoni [verme causador da esquistossomose] na região. Naquela época, poucos pesquisadores tinham esse olhar, que ia além da participação dos seres humanos, dos caramujos e do parasito no ciclo da doença”, comenta Paulo.
As primeiras coletas foram conduzidas por Rosangela Rodrigues e Silva, José Roberto Machado e Silva e Arnaldo Maldonado. Paulo D’Andrea entrou na equipe liderada por Rey por indicação do zoólogo Rui Cerqueira Silva, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que era consultor do projeto.
Então estudante de mestrado, ele tinha experiência no estudo do roedor semiaquático Nectomys squamipes. Conhecido como rato d’água, o animal tinha potencial para atuar como hospedeiro do verme da esquistossomose, por viver em rios e corpos d’água, onde o caramujo Biomphalaria spp costuma liberar as formas infecciosas do parasito S. mansoni. A pesquisa em Sumidouro contribuiu para confirmar o papel do roedor aquático na manutenção do parasito da esquistossomose na natureza e forneceu os primeiros espécimes para o acervo da Coleção Integrada de Mamíferos Silvestres Reservatórios.
Posteriormente, o Laboratório de Biologia e Controle da Esquistossomose se tornou Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres. A Coleção se expandiu a partir de estudos sobre diferentes agravos, frequentemente realizados em parceria com outros Laboratórios do IOC que atuam na pesquisa e em serviços de referência ligados a zoonoses. Entre as cooperações científicas, destacam-se, por exemplo, parcerias com os Laboratórios de Biologia de Tripanossomatídeos, de Ecoepidemiologia da Doença de Chagas, de Hantaviroses e Rickettsioses, de Referência Nacional para Vetores das Riquetsioses e de Biologia Estrutural.
“Para entender o risco de uma zoonose, é preciso conhecer os parasitos, os vetores, os hospedeiros e a relação entre eles e os seres humanos no ambiente. Precisamos do olhar da saúde única, porque o ser humano não é uma ilha. O trabalho da coleção está inserido nessa abordagem”, explica Roberto.
Dos anos 1980 até 2020, foram cerca de 18 mil mamíferos coletados. Destes, cerca de 30% foram depositados em coleções como a Coleção de Mamíferos do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Dessa forma, foi garantido o amplo acesso a exemplares de alta relevância científica, incluindo os chamados "tipos", utilizados na descrição de novas espécies.
Já os "paratipos", que são exemplares da mesma espécie coletados juntamente com os tipos, e outros espécimes estudados pelo grupo foram mantidos no Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres, apoiando as pesquisas científicas e os serviços de referência. Os curadores da Coleção Integrada de Mamíferos Silvestres Reservatórios ressaltam que, com a institucionalização, o material estará mais facilmente acessível aos pesquisadores interessados. Informações sobre o acervo já estão disponíveis no site da Coleção.
“A institucionalização garante acesso ao acervo e seus dados correspondentes, maior visibilidade, perenidade e sustentabilidade da Coleção. Também possibilita receber depósitos de espécimes provenientes de projetos de pesquisadores de outras instituições”, afirma Paulo. “Já fazíamos empréstimos e doações de materiais para pesquisas em colaboração, mas agora temos o compromisso de disponibilizar os dados sobre nosso acervo como coleção pública institucional. Isso é positivo porque traz resposta mais efetiva para o público e nos leva a ser uma coleção cada vez melhor”, conclui Roberto.
Por: Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
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