Beijuzeiras, doceiras e artesãs de São Cristóvão recebem capacitação da Embrapa
Quarta cidade mais antiga do Brasil, São Cristóvão te, no trabalho dessas mulheres uma importante força econômica e turística
São Cristóvão, a “cidade mãe” de Sergipe, reúne um verdadeiro tesouro gastronômico e cultural que mantém viva a memória das histórias locais e das pessoas que já habitaram a cidade sergipana, a quarta mais antiga do País. Entre os dias 17 e 19 de abril, um grupo de cerca de 40 beijuzeiras, doceiras e artesãs da cidade participou de mais uma etapa de capacitação técnica do projeto Paisagens Alimentares, conduzido pela Embrapa Alimentos e Territórios. O treinamento aconteceu no auditório do Museu de Arte Sacra de São Cristóvão.
Desta vez, o foco foi (re)descobrir a cidade e desenvolver um novo olhar sobre as rotas turísticas, a história e a cultura alimentar da região. Para auxiliar nessa tarefa, o projeto convidou a mestre em Gastronomia e pesquisadora a Cultura Alimentar do Ceará Nayane Honorato. Nascida e criada no sertão de Icó (CE), ela apresentou ao grupo a pesquisa desenvolvida no 5º Laboratório de Criação em Gastronomia Social e Cultura Alimentar da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco, nomeado “Sertão Imperecível: rotas culturais para redescobrir Icó”.
Apaixonada por sua cidade natal, Nayane decidiu redescobri-la investigando as histórias ocultas que estavam escondidas nos cadernos de receitas, nas ruas, espaços históricos, alimentos e festejos que habitam a memória dos habitantes. O projeto resultou em cinco diferentes produtos: as rotas culturais para redescobrir Icó; o jogo de tabuleiro Sustança, sobre a identidade icoense; o documentário Sertão Imperecível; um mapa interativo sobre comida tradicional e um acervo de cadernos de receitas de Icó.
“Percebo que o turismo (em São Cristóvão) tem essa pegada mais voltada para o patrimônio arquitetônico, religioso, mas existe também um patrimônio material riquíssimo, que está na história das pessoas e na própria cidade, na arquitetura das pequenas casas, que vai contar a história das pessoas comuns, na relação muito próxima com as manualidades que trazem o artesanato, a comida, as técnicas, a transmissão dos saberes pela oralidade. Essas histórias trazem a continuação do saber fazer. Quando fui conhecendo as pessoas, elas foram dizendo que são mestres da cultura, assim como acontece no Icó. E é através desse reconhecimento e da potencialização dessas histórias que as duas cidades se conectam”, afirma Nayane.
A valorização da identidade alimentar de São Cristóvão também foi outro tema abordado durante a capacitação. A mestranda em Turismo pelo Instituto Federal de Sergipe (IFS) Luara Lázaro, apresentou ao grupo o potencial da comida como meio para fortalecer o turismo na cidade.
“A comida de São Cristóvão tem um grande potencial para fortalecer o turismo do destino, não somente no contexto do turismo gastronômico propriamente dito, mas sobretudo para fortalecer o turismo cultural, religioso, criativo e de experiência. Todos esses segmentos podem ser perpassados pela comida e essa comida pode ajudar a fortalecer as características que singularizam esse destino”, explicou Luara.
Como exemplo, ela cita o biscoito Bricelet, uma herança alimentar conventual. “ O Bricelet pode ajudar a contar um pouco da história da religião católica no município, das ordens religiosas, assim como a queijada pode ajudar a contar um pouco sobre as festas religiosas do município já que acaba sendo uma comida-base destas festividades. É possível por exemplo ver na festa do Nosso Senhor dos Passos que vem mulheres de várias localidades do município para o centro histórico comercializar a queijada, comida emblemática dessa festividade”, conta a mestranda.
Luara acredita que é possível contar a história de São Cristóvão e a história de vida das pessoas pelo viés do paladar e dos simbolismos atrelados à comida local, e que a patrimonialização de algumas comidas pode potencializar os restaurantes e bares do município. A comida, segundo ela, também possibilita contar a história dos negros e das pessoas mais pobres, muitas vezes invisibilizadas pela história dita oficial. “Quando a gente fala da queijada, a gente possibilita que o turista tenha acesso à história do município através do olhar da bisneta de uma mulher escravizada, e isso é extraordinário porque é uma forma de recontar a história através de agentes que naturalmente acabam sendo invisibilizados”, conta.
Turismo, História e Patrimônio
O Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação do Mestrado Profissional em Gestão do Turismo do Instituto Federal de Sergipe (PPMTUR/IFS), Denio Azevedo, apresentou a palestra “Patrimônio Cultural, Memória e Identidades”. Ele reflete que é preciso atrelar o patrimônio cultural material de São Cristóvão, já comercializado como cidade colonial e histórica, ao patrimônio imaterial formado pelo conjunto de culturas populares, histórias de vida, saberes e fazeres.
“O turismo pode mudar vidas. A gente tem aqui pessoas que vivem da sua arte, do seu saber, do seu fazer, mas que ainda não tem a possibilidade de crescimento porque ao longo da vida tiveram um conjunto de promessas não atendidas, sofreram muito com a falta de perspectiva da cidade. Mas no atual contexto a cidade vem mudando a sua percepção sobre a atividade turística, com o mínimo de planejamento turístico, então se essas pessoas sentarem e conversarem, se a comunidade participar do planejamento, der as mãos e fizer um trabalho coletivo, é possível que a gente tenha um deslanche desse turismo aqui”, acredita o professor. Para Azevedo, é preciso fazer um trabalho de hospitalidade, profissionalização, melhoria da infraestrutura turística, planejamento participativo e gestão colaborativa para que a atividade turística se desenvolva na cidade.
“Nós temos tudo, mas precisamos ter um povo que se sinta pertencente a essa história. São Cristóvão, a cidade-mãe de Sergipe, hoje é uma cidade que tem tudo que o turista precisa conhecer, tanto de patrimônio material quanto imaterial. É preciso que as pessoas venham conhecer, nós temos um potencial turístico muito forte”, afirma a educadora patrimonial e coordenadora do Museu Via Sacra, Vânia Correia.
O consultor José Ferreira e a bolsista do projeto Lydayanne Lilás apresentaram ao grupo o conceito de Paisagens Alimentares, que relaciona comida a lugares, pessoas, significados, processos materiais e práticas, implicando um vínculo dinâmico entre cultura alimentar (gosto, significado) e materialidade alimentar (estrutura social, paisagem física, ecologia). Ao final, todos participaram de uma dinâmica que consistia em colocar as digitais numa árvore de intenções, indicando o compromisso de todos para o sucesso do projeto.
A artesão, doceira e ceramista Carmen Verônica, nascida e criada em São Cristóvão, se reinventou na comida, no artesanato com o barro, biscuit e tecido. Com a melhoria da experiência turística em São Cristóvão, ela espera mostrar a sua arte e também ter retorno financeiro.
“Já percebi que esta é uma capacitação com várias etapas, partes técnicas, como pegar nosso produto e colocar criatividade em cima. Eu faço um boizinho que representa uma figura do reisado daqui de São Cristóvão, que é uma dança da qual participo desde a minha infância. Faço esses trabalhos manuais representando a minha cultura. São Cristóvão tem um potencial muito rico, uma diversidade de matérias-primas como cipó,barro, frutas para desenvolver doces e licores”.
Jogos de trilha
Os jogos de trilha são, segundo a definição da Pedagogia Griô, criada por Líllian Pacheco, “rituais de vínculo e aprendizagem em forma de jogo educativo e cooperativo que facilita o processo de elaboração do conhecimento por meio da brincadeira e do diálogo”.
A ferramenta foi apresentada pela griô aprendiz Irene Lôbo, jornalista na Embrapa Alimentos e Territórios. “É possível usar os jogos de tabuleiro como metodologia para valorizar a cultura local, com foco no fortalecimento da identidade e vínculo com a ancestralidade. Além disso, o jogo de trilha possui uma missão coletiva, em que os participantes aprendem a fazer uma nova leitura da sua realidade por meio da brincadeira”, explica a aprendiz.
A pesquisadora Nayane Honorato apresentou o jogo de tabuleiro “Sustança”, baseado na experiência de percorrer os pontos históricos e gastronômicos da cidade de Icó (CE). “O jogo traz um mapa interativo com elementos importantes da cultura alimentar do Icó e do Ceará, explorando os conhecimentos contidos nas ruas e nas receitas antigas da cidade”, explicou.
O grupo foi estimulado a pensar em propostas parecidas para quem desejar “viver” a cidade de São Cristóvão. “A cultura alimentar precisa ser difundida e experimentada para que os saberes tradicionais não se percam. Ao estimular o consumo dos produtos regionais e da história e cultura de São Cristóvão, esperamos fortalecer e valorizar conhecimentos e práticas tradicionais, além de estimular o desenvolvimento de negócios e promover a geração de renda e a melhoria da qualidade de vida das comunidades, aliadas ao turismo sustentável e à preservação dos territórios”, concluiu o líder do projeto Paisagens Alimentares na Embrapa, Aluísio Goulart.
Além de São Cristóvão, o projeto Paisagens Alimentares também atua nos municípios de Indiaroba (SE), Olho D’Água do Casado (AL), Palmeira dos Índios (AL) e Sirinhaém (PE). As capacitações oferecidas têm foco em quatro eixos principais, voltados ao desenvolvimento territorial e ao turismo sustentável de base comunitária: governança, meio ambiente, turismo e hospitalidade e comunicação.
O projeto é financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e tem como objetivo principal desenhar e promover um marco estratégico para o desenvolvimento do turismo em paisagens alimentares rurais, priorizando a valorização, proteção e resiliência ambiental e social dos territórios.
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