Saúde mental: cuidados possíveis em meio às enchentes no Rio Grande do Sul
Orientações práticas, para profissionais de saúde, amigos e familiares, sobre como ajudar quem está sofrendo. Profissionais orientam sobre as três fases que mudam o comportamento
A vida no Rio Grande do Sul nunca mais será a mesma após as enchentes que assolam o estado. As pessoas agora precisam superar as perdas, viver o luto, lidar com o estresse pós-traumático e buscar forças para recomeçar. Em meio a esse cenário caótico, a saúde mental se torna uma preocupação, afinal, é fundamental buscar apoio e fortalecer-se para superar essas dores. Diante desse desafio, nesta reportagem da série especial sobre enchentes, profissionais da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), que administra três Hospitais Universitários Federais no estado, oferecem orientações e suporte para fortalecer a saúde mental e buscar forças para seguir em frente.
A psiquiatra do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC-UFPE), Isabela Pina, destacou: “É fundamental manter as pessoas seguras, fornecendo suporte físico, alimentar e de medicamentos, além de retirá-las da zona de risco”. A médica também alertou que “situações traumáticas podem desencadear problemas psicológicos a curto, médio e longo prazo. É normal sentir uma variedade de emoções diante de uma tragédia, mas é essencial buscar apoio e compartilhar as dificuldades emocionais”. A superação desse evento traumático requer tempo, compreensão e cuidado.
Fases do processo de reação a um desastre
“Meu caro colega, tem sido desalentador observar tantas pessoas vivenciando experiências tão desafiadoras perante esta situação de calamidade que assola o RS. Então, nesse momento, faz-se imperativo cuidar da saúde mental, especialmente porque somos profissionais dedicados ao cuidado, assim, o apelo é que você também se cuide, carinhosamente”, aconselhou a psicóloga organizacional do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr., da Universidade Federal do Rio Grande (HU-Furg), Elisangela Edicarla Mendes Barbosa à repórter.
A especialista explicou que é fundamental compreender que as reações das pessoas diante de um mesmo desastre podem ser diferentes, e que é importante não as comparar. Cada indivíduo é único e atribui significados distintos às experiências pelas quais passa. Alguns se recuperam rapidamente, outros demandam ajuda especializada, e é preciso ter um olhar atento e acolhedor para a comunidade em todo esse contexto. Assim, é importante observar e identificar as mudanças no comportamento das pessoas após um trauma, bem como a forma como estão lidando com essas mudanças - elas podem ocorrer em três fases, como explicado pelo National Center for Post-Traumatic Stress Disorder : impacto, imediata do pós-desastre e recuperação.
A fase do impacto é caracterizada pela resposta imediata ao desastre e pode envolver tanto as respostas apropriadas de proteção quanto as desorganizadas, com distorções cognitivas e dissociações. Já a fase imediata do pós-desastre é marcada pelo recuo do impacto e o início do resgate das atividades habituais, podendo surgir sentimento de alívio por sobreviver. Os primeiros efeitos na saúde mental podem aparecer aqui, como negação, apatia, desorientação, ansiedade e medo. Além disso, o sentimento de alívio por sobreviver pode levar a uma euforia passageira.
Por fim, a terceira fase, conhecida como recuperação, é caracterizada por um período prolongado de ajustamento e retorno ao equilíbrio anterior. Aqui, a recuperação está diretamente relacionada à extensão da destruição causada pelo desastre e às condições mentais dos indivíduos e suas famílias. Durante essa fase, podem surgir necessidades emocionais que não foram evidenciadas nas fases anteriores, como sentimentos de raiva, solidão e frustração.
Elisangela salienta que “a maioria das pessoas que vivenciam eventos traumáticos não irão desenvolver Transtorno do Estresse Pós-Traumático. As reações citadas, ao longo do tempo, tendem a se apresentarem com menor frequência e intensidade, corroborando com os estudos que demonstram que 30% das pessoas que vivenciaram o evento traumático irão desenvolver o Transtorno do Estresse Pós-Traumático, incluindo os profissionais que atuaram na linha de frente”.
Orientações para dar apoio emocional em situações de crise
Diante de situações de crise, é fundamental oferecer suporte emocional às pessoas afetadas, garantindo que se sintam seguras e apoiadas. A psicóloga do HU-Furg apontou algumas diretrizes elaboradas por especialistas da área de desastres e emergências, popularizada como Primeiros Socorros Psicológicos (PSP).
Seguem algumas orientações:
•Procure saber detalhes sobre o evento: O que aconteceu? Como aconteceu? Quando? Isso será importante na sua ajuda ao próximo.
•Oferecer informações precisas auxiliam no controle da ansiedade gerada nessas situações.
•Tenha consigo uma lista de contatos dos serviços de auxílio disponíveis no local do desastre. Isso será útil quando for oferecer ajuda a familiares de vítimas e/ou outros envolvidos.
•Aproxime-se com cuidado e respeito, apresente-se e explique que está ali para ajudar. Escute sem julgamentos. •Demonstre empatia, validando sentimentos da pessoa. Evite dar conselhos.
•Ofereça ajudas práticas e simples, ofereça alimento, água, ouvidos. Respeite o tempo da outra pessoa. Incentive buscar ajuda profissional qualificada, se necessário.
•Siga sempre as ordens das autoridades competentes responsáveis pelo gerenciamento da crise.
Esteja atento:
•Verifique se o local está seguro e se há pessoas com necessidades básicas urgentes, como ferimentos, fome ou sede.
•Embora sejam reações esperadas depois de ser exposto ao trauma, esteja atento a possíveis reações severas ao estresse, como sintomas físicos, choro, tristeza, ansiedade, nervosismo e incapacidade de cuidar de si ou de seus filhos. Logo, valide o que a pessoa está sentindo, pode ser por meio de um resumo do que ela falou ou repetindo em outras palavras o que ela trouxe, levando-a a compreender que tais comportamentos são esperados e justificados.
•Ofereça, se possível, um ambiente privado para conversar sem interrupções.
•Garanta sigilo sobre as conversas.
•Pergunte de forma casual sobre as necessidades e preocupações das pessoas, demonstrando empatia e acolhimento.
•Em casos mais graves, ajude as pessoas a se reconectarem consigo mesmas, estimulando-as a realizar movimentos simples e a focarem na respiração.
•Mantenha a calma, seja paciente e honesto ao oferecer suporte, admitindo quando não souber alguma informação.
•Auxilie as pessoas a acessarem outros serviços disponíveis e a suprirem suas necessidades básicas, fornecendo informações e apoio para entrar em contato com entes queridos.
•Incentive estratégias saudáveis de enfrentamento, como descanso adequado, alimentação balanceada, atividades relaxantes e exercícios físicos.
•Desencoraje estratégias negativas, como o consumo de álcool, isolamento social e negligência da higiene pessoal.
Orientações para pais e familiares:
•Para pais e familiares, é importante cuidar de si mesmos antes de acolher as emoções das crianças.
•Recomenda-se o uso de livros infantis como ferramenta lúdica para auxiliar as crianças a compreenderem a situação, por exemplo: E a chuva ..., da Sabrina Fuhr e Céu, Sol, Sul , da Cristina Saling Kruel. Use o lúdico para auxiliar as crianças e permita-se imaginar junto!
•Para a criança brincar é uma necessidade básica, pois ajuda a esquecer momentos difíceis e é essencial para um bom desenvolvimento motor, social, emocional e cognitivo.
O que não fazer:
•Evite solicitar que a pessoa relate sobre o que ela vivenciou durante a tragédia, o que ela viu ou testemunhou, uma vez que tal ação pode piorar a sua condição socioemocional, bem como potencializar as chances de desenvolver um quadro de Transtorno do Estresse Pós-Traumático. Caso a pessoa queira falar sobre, acolha, porém, não estimule para que ela traga mais detalhes. O objetivo é acalmá-la e solucionar questões práticas.
•Evite acompanhar, exageradamente, notícias, vídeos, áudios, imagens sobre os eventos traumáticos, pois tal comportamento pode gerar muito sofrimento psicológico.
•Demonstre atenção genuína por meio de sinais verbais e não verbais.
•Não julgue o que a pessoa possa ter feito, ou o que não tenha feito.
•Não minimize o sofrimento dos envolvidos: Não diga coisas do tipo “Você não deveria se sentir dessa forma”, ou “Você deve se sentir sortudo por ter sobrevivido” ou “O que você perdeu foram bens materiais”.
•Não use termos técnicos.
•Não dê falsas promessas de ajuda e informações que não tenha certeza.
•Não pense e atue como se tivesse que resolver todos os problemas das pessoas por elas.
Cuidando de quem cuida
A psicóloga Elisangela enfatizou: “Vamos nos cuidar e cuidar do nosso próximo? Juntos, podemos criar uma rede de apoio e de solidariedade para enfrentar esses desafios que deixam grandes sequelas na saúde mental de todos”.
Além destas orientações dos especialistas para quem puder prestar auxílio às vítimas, a Rede Ebserh, por meio da Diretoria de Gestão de Pessoas, implementou um serviço para apoiar e acolher os trabalhadores dos três hospitais da Rede no Rio Grande do Sul. Os atendimentos são realizados por equipe multidisciplinar composta por profissionais que se voluntariaram para essa atividade. Colaboradores interessados devem entrar em contato com a Divisão de Gestão de Pessoas de seu hospital.
Por Ebserh
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