Imóvel da Gente: reconhecimento e valorização das comunidades quilombolas do Brasil
Coordenado pelo Ministério da Gestão, o programa de democratização de Imóveis da União já destinou mais de 600 imóveis para políticas públicas como educação, habitação e saúde. Conheça a história da comunidade remanescente do Quilombo Vidal Martins, em Santa Catarina, beneficiada pelo programa
“Esse programa traz a nossa valorização. Ele traz para comunidade, dignidade. Porque a gente vai poder ser como queremos ser. A gente teve que se desconstruir para ser o que as pessoas queriam, apagar toda nossa cultura, e o Taus traz a valorização da identidade da comunidade quilombola”. É assim que Helena Vidal, 42 anos, remanescente do Quilombo Vidal Martins, em Florianópolis, Santa Catarina, celebra a entrega do Termo de Autorização de Uso Sustentável Coletivo (Taus), pela Secretaria de Patrimônio da União do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (SPU/MGI), por meio do programa de democratização de imóveis da União, o Imóvel da Gente.
A comunidade é constituída por 31 famílias descendentes de escravos. As famílias ocupam o camping do Parque Estadual do Rio Vermelho, desde 2020, e obtiveram a concessão de autorização de uso sustentável de cerca de 170 hectares de área para a comunidade, em outubro deste ano.
O reconhecimento territorial de povos e comunidades tradicionais que vivem e cuidam de áreas da União faz parte de uma das linhas de ação do programa Imóvel da Gente. O documento (Taus) é importante para garantir maior segurança de posse durante o andamento processual de reconhecimento de ocupação do território ancestral e possibilita que as práticas culturais sejam preservadas e reproduzidas, e que as comunidades possam se manter com o uso sustentável das terras.
“Esse processo que a SPU reconheceu 170 hectares para a comunidade deu uma alegria muito grande, porque a gente pode fazer moradia, a gente pode tirar meios de sustentabilidade e pode fazer nossas práticas culturais, através da pesca também. A comunidade está em festa por causa disso. Isso vai trazer geração de renda, vai trazer condições da gente esperar os próximos passos. Agora a gente vai ter nossos recursos, vai dar dignidade às famílias, porque é um processo muito cansativo. Isso trouxe justiça também porque a gente conseguiu reconhecer a primeira comunidade remanescente de quilombo dentro de Florianopolis”, comemorou Helena.
Reconhecimento Territorial
A luta pelo reconhecimento das terras do Quilombo Vidal Martins teve início em 2012. Helena lembra que ela e a irmã começaram a ficar curiosas com as histórias que a mãe delas, Jucélia Vidal, contava sobre o avô, sobre ele ter tido muitas terras, em Florianópolis (SC). Elas passaram a investigar a história da família para entender de onde elas vieram e para provar que as terras do Parque Estadual do Rio Vermelho pertenciam à sua família, de onde, segundo sua mãe, a família foi expulsa, em 1960, quando houve a construção do parque.
“Minha mãe tem uma certidão em que ela se chama Martins. E ninguém tinha esse sobrenome. Então, a gente foi até o cartório para ver se achávamos outras certidões e aí começou uma longa busca”. A pesquisa das irmãs envolveu acervos da igreja, da universidade, museus, órgãos públicos e até de cemitérios da cidade. Helena lembra que foi uma pesquisa demorada e muito dolorosa, que levou mais de um ano. As informações eram escassas e desencontradas. Segundo ela, era como se os seus antepassados não tivessem existido.
“Esse programa traz a nossa valorização. Ele traz para comunidade, dignidade. Porque a gente vai poder ser como queremos ser. A gente teve que se desconstruir para ser o que as pessoas queriam, apagar toda nossa cultura, e o Taus traz a valorização da identidade da comunidade quilombola”, afirma Helena Vidal, remanescente do Quilombo Vidal Martins.
“Teve uma época que eu pensei em desistir porque o negro quando luta por terra, ou para entrar na faculdade, ou para ser alguém na vida, ele encara um racismo de frente, muito violento. Então, eu pensei em desistir porque na época que eu comecei eu queria benefícios, eu queria uma casa boa, queria dignidade. A gente estava muito ansiosa. Mas depois eu comecei a ver que existia uma história, existia ali uma justiça para o nosso povo, vi que a Joana [mãe de Vidal Martins, que dá nome ao quilombo, e que foi separada dele quando ele tinha cinco anos, nunca foi liberta. Comecei a ver a história da terra dos órfãos, que a escravidão foi um processo muito sofrido do nosso povo e que tentaram apagar. Então eu comecei a lutar por justiça”, disse.
Ao longo do tempo, Helena e a irmã foram aprimorando a leitura dos livros, documentos e certidões antigas, enfrentando as negativas de acesso a documentos. Elas juntaram as peças do quebra-cabeça da reconstituição histórica da família com a ajuda de sites na Internet como o Family Search e com a pesquisa de rua, entrevistando as pessoas da região. Nessas leituras, elas encontraram o registro de Vidal Martins como escravo e, a partir disso, conseguiram as certidões, na cúria diocesana, que as ajudaram a construir toda a árvore genealógica da família.
“O fruto dessa pesquisa deu um reconhecimento de sermos a primeira comunidade quilombola dentro de Florianópolis e, talvez, a única. E as pessoas ficavam admiradas ‘Como vocês conseguiram colocar um quilombo dentro da ilha?’ A gente já estava aqui, a gente só conseguiu o reconhecimento. Foi muito difícil essa pesquisa, foi muita dolorosa e de muito enfrentamento”, reconheceu.
Com os documentos da pesquisa, elas conseguiram a certificação da comunidade como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares, em outubro de 2013. E, após anos de luta e enfrentamento judicial, foi publicada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a Portaria que reconhece e delimita a área de 961 hectares como terras da comunidade. Desse total, os 170 hectares que estavam sob guarda da União foram destinados à comunidade por meio da assinatura do Taus, em outubro deste ano, resultado do Imóvel da Gente.
Resgate da Identidade
Helena conta, com orgulho, que uma das atividades desenvolvidas no camping do Parque Estadual, onde a comunidade reside, é a Educação Escolar Quilombola, reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC). No espaço, há salas de aula e uma quilomboteca. No local, jovens e adultos aprendem sobre os “saberes e fazeres” do seu povo, onde as próprias pessoas da comunidade passam aos demais as tradições e a cultura do grupo. “A Educação Escolar Quilombola é diferenciada porque na escola a gente aprende muito pouco sobre a nossa história e o que a gente aprende é uma história errada de que o nosso povo nunca quis trabalhar, que o nosso povo foi escravizado porque era preguiçoso. A educação escolar quilombola vem para trazer nossa cultura e resgatar nossa identidade”, defendeu.
Helena também mostra outra atividade que está sendo feita pela comunidade como um resgate da ancestralidade dentro do próprio território. A comunidade cultiva um viveiro de mudas nativas para fazer o reflorestamento da área. “Foi minha mãe que chegou aqui e reviveu esse viveiro que estava morrendo. Esse viveiro é o coração do parque. Estamos fazendo várias mudas porque hoje a gente tem um parque que é feito de Pinus, que foi o próprio estado que plantou, e é visto como uma praga, porque realmente destrói o meio ambiente, acaba com o solo. Então, tem um processo de retirada, a gente tem uma equipe de biologia que está trabalhando isso de forma cautelosa e cuidadosa porque não pode tirar tudo, porque o impacto ao meio ambiente é muito forte”, explicou.
Rudinei Odílio Vidal, primo de Helena, celebra a luta e as conquistas da comunidade. Hoje, ele é um dos professores de “saberes e fazeres” da educação quilombola e lembra, com orgulho, de toda a trajetória percorrida pelas primas para que o território fosse reconhecido. Ele reforça a importância das atividades da comunidade para a preservação da natureza e o cuidado com o território.
“A gente pode hoje andar em qualquer lugar desse território, caminhar, botar o pé no chão e sentir aquele alívio, ver que é nosso, depois desses 11 anos. É a maior riqueza que nós temos. Não é o dinheiro, mas sim a natureza. A natureza é vida para nós, a natureza é um abraço que nós temos que abraçar inteiro, como diz a minha tia Jucélia. A maior riqueza é vivenciar esse ar puro da natureza…Isso é a maior riqueza que nós temos aqui. Por isso, temos que preservar”, defendeu Rudinei.
Futuro
Com a entrega do Taus pelo Ministério da Gestão, a Comunidade Quilombola Vidal Martins agora se organiza para continuar a luta pela titularidade das outras partes do território junto ao governo do estado catarinense. Além do camping, que está sob a gerência da comunidade, desde 2023, o grupo se prepara para começar a usar as terras, de forma sustentável, para gerar renda com a pesca, há planos para uma futura plantação de mandioca para a fabricação de farinhas, além da ampliação do resgate das tradições culturais e históricas da comunidade.
Helena se emociona ao falar da conquista desse território para o seu povo e a sensação de justiça. “A emoção de você pisar em um lugar que você sempre olhou como o teu, mas nunca pôde entrar, nunca pôde construir, é muito forte. A energia desse lugar é muito forte, você sente eles [os ancestrais da família] ali dentro. Quando você chega, você se senta aqui, eles estão te abraçando, porque a gente sabe que o nosso povo resistiu à escravidão para que a gente estivesse aqui. Eles resistiram para que eu existisse, para que a minha mãe existisse, para que o meu filho existisse. Então, estar aqui e dizer, assim, a gente chegou nas terras que vocês tanto sofreram, mas que vocês resistiram e hoje é nossa. Porque a gente sabe que o nosso povo, na escravidão, o sonho era ter um pedaço de terra pra morar. E nunca tiveram. E o que tiveram ainda foram arrancados, como o meu avô foi. Então, estar aqui é uma emoção de você tirar a sandália dos pés, fechar os teus olhos e sentir eles te abraçando, dizendo assim, ´muito obrigada, você conseguiu fazer justiça por nós´”, finalizou.
Para conhecer mais sobre a história do Quilombo Vidal Martins, clique e acesse a publicação .
Programa Imóvel da Gente
O Imóvel da Gente, Programa de Democratização de Imóveis da União, direciona imóveis sem uso ou ociosos para políticas públicas como educação, habitação, saúde, assistência social, cultura e esporte. O programa, coordenado pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, é um marco na gestão do patrimônio da União ao fomentar políticas públicas, promover habitação de interesse social em áreas bem localizadas, regularização fundiária em territórios vulneráveis e contribuir para o cumprimento da função socioambiental dos imóveis públicos, em benefício da população.
Por meio do Imóvel da Gente, foram destinados, em 2023, para uso social (moradia, posto de saúde, escola, espaço para cultura, entre outros) 294 imóveis. Em 2024, até outubro, já foram destinados outros 331 imóveis, o que indica a aceleração do programa. Além da comunidade de Florianópolis, em Santa Catarina, o MGI formalizou a entrega do TAUS para a Comunidade dos Remanescentes de Quilombo da Fazenda, localizada em Ubatuba (SP) .
Mais de 400 mil famílias já foram beneficiadas pelo programa Imóvel da Gente, pois um imóvel (terreno ou prédio) pode ser ocupado por diversas famílias. O programa democratiza o acesso ao patrimônio público, valoriza os imóveis da União e transforma a vida da população brasileira.
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