Estado brasileiro identifica novas vítimas da ditadura e reforça compromisso com justiça de transição
Anúncio das identificações de Grenaldo de Jesus e Denis Casemiro mobiliza governo, universidades e familiares em defesa da memória e dos direitos humanos

Os desaparecidos políticos e vítimas da ditadura militar brasileira, Grenaldo de Jesus da Silva e Denis Casemiro, foram oficialmente identificados . A confirmação foi anunciada nesta quarta-feira (16) pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), com base nos resultados do trabalho do Projeto Perus de análise dos remanescentes ósseos localizados na Vala Clandestina de Perus, em São Paulo (SP).
A iniciativa faz parte de um esforço conjunto do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por meio do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), e da Prefeitura de São Paulo.
A identificação é resultado do trabalho realizado pelo Projeto Perus, que conta com uma equipe multidisciplinar e com o reforço de novas tecnologias genéticas em parceria com o laboratório International Commission on Missing Persons (ICMP), firmada pelo MDHC.
Vítimas da repressão
Grenaldo de Jesus da Silva, maranhense e ex-militar da Marinha do Brasil, foi preso em 1964 após reivindicar melhores condições de trabalho. Vivendo na clandestinidade após escapar da prisão, foi morto em 1972 ao tentar capturar uma aeronave no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Enterrado como indigente no Cemitério Dom Bosco, permaneceu desaparecido até ser identificado em 2025.
Já Denis Casemiro, nascido em Votuporanga (SP), foi pedreiro, trabalhador rural e militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Preso em 1971, foi torturado e executado por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), sob comando do delegado Sérgio Fleury. A versão oficial da época alegava tentativa de fuga. Denis é irmão de Dimas Casemiro, também militante político, identificado em 2018 pelo mesmo projeto.
Além das três identificações, o Projeto Perus também contribuiu para reconhecer Aluizio Palhano Pedreira Ferreira, também em 2018.
Compromisso com a verdade
Presente na cerimônia de anúncio, a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, destacou o papel do Estado na reparação histórica e reafirmou o compromisso com as políticas de memória, verdade e justiça. “A luta por memória, verdade e justiça não é apenas sobre o passado. Ela é sobre o presente e o futuro do Brasil. Quando identificamos os restos mortais de pessoas que foram silenciadas pela ditadura, estamos dizendo que a democracia precisa ser construída com base na dignidade humana”, afirmou.
A ministra lembrou que o gesto de restituição é, também, um gesto de humanidade. “Essas identificações devolvem às famílias o direito de enterrar seus mortos com dignidade, ao mesmo tempo em que devolvem ao Brasil parte da sua história que foi apagada. É um gesto de humanidade e de compromisso com os direitos humanos”, pontuou.
Ao destacar o simbolismo da Vala de Perus — local onde os remanescentes ósseos foram encontrados —, a ministra enfatizou: “Não se trata apenas de um lugar físico. É um símbolo de tudo aquilo que o autoritarismo tentou esconder. É por isso que essa luta é coletiva, feita de mãos dadas entre o governo, a universidade, os familiares e a sociedade civil.”
Macaé concluiu destacando a importância do reconhecimento institucional: “Quando o Estado brasileiro pede desculpas, como fizemos neste ano, ele começa a romper com a cultura do silêncio e da negligência. Mas o pedido de desculpas precisa ser acompanhado de ação, de orçamento, de compromisso real com a justiça de transição.”
Também durante o evento, a presidente da CEMDP, Eugenia Gonzaga, relembrou o papel histórico de diversas instituições e da sociedade civil na luta por justiça. “Com a abertura da vala, graças à vontade política da então prefeita Luiza Erundina, surgiram as primeiras tentativas de identificação. Depois de um longo périplo institucional, foi o Ministério Público Federal, em São Paulo, que retomou os trabalhos, com o apoio de juízes federais e procuradores comprometidos com a verdade”, afirmou.
Memória e ciência
Para a representante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos da Ditadura, Amelinha Teles, esse tipo de trabalho é essencial para resgatar a história nacional. “Essa busca pelo desaparecido, na verdade, é a busca pela história do Brasil. Por falta dela, tem muito jovem que ainda pede a ditadura, pede a volta dos militares, que não sabe que aquilo representa ditadura, assassinato, desaparecimento de corpos, estupros, desestruturação das famílias”, afirmou.
Amelinha também fez um apelo emocionado ao lembrar das marcas que a repressão deixou em sua família: “Eles falam em defesa das famílias, mas eles desestruturam as famílias. Eu tive meus filhos sequestrados, minha irmã teve filho na cadeia. O filho de Grenaldo nem pôde conhecer direito o pai, porque ele era um menino de 4 anos de idade quando o pai foi assassinado pela ditadura, pelo DOI-Codi”, concluiu.
O coordenador científico do Projeto Perus, Samuel Ferreira, ressaltou o caráter técnico e multidisciplinar que tem possibilitado os avanços nas identificações. “Todos esses dados são levantados e catalogados por uma equipe que a gente chama de equipe de análise post mortem ”, disse, destacando também a importância da escuta das famílias para alimentar a pesquisa ante mortem .
“A partir dessa pesquisa, levantamos cerca de 42 desaparecidos políticos que pudessem estar no contexto das 1.049 caixas com remanescentes ósseos da vala clandestina de Perus”, completou Ferreira, que também ressaltou a parceria com o laboratório internacional ICMP, na Holanda, como decisiva para a precisão das análises de DNA.
A Vala de Perus
Descoberta em 1990 no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, a Vala Clandestina de Perus é um dos maiores símbolos das violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964–1985). No local, foram enterradas vítimas do regime, além de pessoas não identificadas e indigentes. As ossadas foram inicialmente encaminhadas à Unicamp e UFMG, mas enfrentaram décadas de abandono institucional.
Em 2025, o Governo Federal realizou um pedido oficial de desculpas pela negligência histórica na guarda e análise dos remanescentes ósseos, reafirmando o compromisso com a memória, a verdade e a justiça. Desde então, o MDHC tem investido na reestruturação e fortalecimento do trabalho do Projeto Perus, bem como na retomada dos esforços da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, extinta em 2022 e reinstalada pela atual gestão.
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