Expedição une ciência e saberes tradicionais indígenas para resgatar alimentos
O projeto busca resgatar espécies nativas e cultivadas, valorizar saberes tradicionais e estimular a bioeconomia indígena como estratégia para reduzir a insegurança alimentar nas aldeias

Entre 7 e 9 de agosto, pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Universidade Federal de Goiás (UFG) e Embrapa Alimentos e Territórios estiveram no noroeste de Mato Grosso para dialogar com representantes dos povos Terena, Paresí e Nambikwara e mapear frutos e tubérculos que podem voltar a compor a dieta tradicional das aldeias.
O som vibrante da arara-canindé cortava o ar enquanto o rio Buritis corria, constante, atrás da pequena cozinha com telhado de palha de babaçu. Ali, na aldeia Serra Azul, a professora Cleide Terena lembrava de um tempo em que o prato mais esperado da infância era um mingau feito de um milho vermelho, hoje desaparecido da região. “Meu avô tecia redes de algodão. A gente vivia de outra forma. Hoje, muitos dos nossos alimentos se perderam”, contou, com o olhar dividido entre a memória e o futuro.
A cena fez parte da primeira expedição do projeto “Aproveitamento integral de frutos e tubérculos da Amazônia Legal”, iniciativa da UFMT, UFG e Embrapa Alimentos e Territórios. Financiado pela Iniciativa Amazônia+10, o projeto busca resgatar espécies nativas e cultivadas, valorizar saberes tradicionais e estimular a bioeconomia indígena como estratégia para reduzir a insegurança alimentar nas aldeias.
Com duração prevista de 36 meses, a pesquisa conta com o apoio do CNPq e das Fundações de Amparo à Pesquisa de Mato Grosso (FAPEMAT), Alagoas (FAPEAL) e Goiás (FAPEG).
Mulheres em rede - Cleide é líder da Associação Thuthalinansu, criada em 2018 para fortalecer a atuação das mulheres indígenas e suas atividades produtivas. “Os homens pegavam o carro e o dinheiro para ir à cidade e nós ficávamos com as crianças passando fome. A evasão escolar aumentava. Criamos a associação para mudar isso”, explica. Desde então, as associadas já participaram de edital da marca francesa L'Oréal, cursos de corte e costura, desenho de moda e ações ligadas à agricultura familiar e à ancestralidade. Mas os desafios permanecem — e agora também vêm do clima. “As mudanças climáticas já chegaram aqui. A colheita não tem mais o mesmo tempo certo”, afirma.
Na aldeia Cabeceira do Jabuti, as irmãs Vanessa, Vânia, Elisabete e a matriarca Lourdes, do povo Nambikwara, receberam a equipe mostrando, com orgulho, o artesanato colorido que produzem. Entre lembranças e histórias, listaram os alimentos que despareceram: milho-pipoca, feijão-fava, amendoim, cará-roxo. Vanessa compartilhou o mito do Menino que virou roça e ressaltou que, em quase todos os rituais, é costume oferecer comida aos parentes indígenas como forma de agradecimento e conexão. Hoje, porém, a dieta na aldeia é restrita: arroz, mandioca, feijão, macarrão, temperos industrializados, café, leite, mingau de fubá, frango e peixe. Hortaliças não aparecem no prato.
No último dia de expedição, 14 indígenas das aldeias Anchieta, Arara Azul, Guarantã, Kaititu, Novo Horizonte e Paraíso se reuniram na aldeia Serra Azul. Levaram açafrão, farinha de mandioca, massa para beijú, limão-galego, banana, tempero caseiro, mini abóboras, araruta, um peixe inteiro e peças de artesanato, mostrando o que ainda produzem e consomem. “Percebemos que há um mesmo comportamento alimentar nas aldeias, mas falta diversidade”, observou a coordenadora do projeto, Maressa Morzelle (UFMT). Para o pesquisador Moacir Haverroth (Embrapa), os fatores geográficos também pesam: “A TI é cercada por grandes fazendas, com as melhores terras. Aqui, o solo é pobre, típico do Cerrado, com relevo para mais acidentado e as queimadas são comuns”.
O que ficou e o que se perdeu
Ainda resistem na TI Tirecatinga alimentos como mandioca, batata, araruta, jatobá, cará, mangaba, cajuzinho-do-cerrado, abacaxi-do-cerrado, bacaba e birici. Entre os pratos típicos, destacam-se o beijú de mandioca com peixe cozido, o bolo de beijú com peixe e feijão-fava. O mais citado, porém, foi a chicha — bebida fermentada tradicionalmente produzida por povos indígenas da América Latina, especialmente nos Andes e na Amazônia. Pode ser feita com grãos, como o milho (especialmente o milho jora), ou raízes, como a mandioca. Mais do que uma bebida, é um elemento cultural de forte significado ritual e social.
Já na lista dos alimentos perdidos estão, além do milho vermelho lembrado por Cleide, o milho-pipoca, feijão-fava, amendoim e cará-roxo — espécies que o projeto pretende coletar, analisar, multiplicar e retonar as sementes para as aldeias.
As próximas etapas do projeto incluem oficinas sobre multiplicação de sementes, alimentação saudável nas escolas da TI e uso da biodiversidade como ferramenta para Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Ao final, uma oficina gastronômica reunirá pratos tradicionais e apresentações culturais.
Mais do que resgatar sabores, a Iniciativa Amazônia+10 é uma aposta na autonomia alimentar e no protagonismo indígena. Um caminho para que as histórias, rituais e memórias afetivas ligadas à comida sigam vivas — e para que as crianças das futuras gerações possam provar, de novo, o mingau de milho vermelho.
📌 Terra Indígena Tirecatinga
📍 Localização: Município de Sapezal, noroeste de Mato Grosso, no bioma Cerrado.
📏 Área: 131 mil hectares.
📜 História: Declarada terra indígena em 1983 e homologada em 1991.
👥 Povos indígenas: Terena, Paresí, Nambikwara, além de presença Manoki e Rikbaktsa.
🏠 Aldeias: 16 aldeias; o projeto atua diretamente em 8 delas.
👤 População: Aproximadamente 244 pessoas (dados 2022 – ISA).
🌱 Projeto: “Aproveitamento integral de frutos e tubérculos da Amazônia Legal”, coordenado pela UFMT, UFG e Embrapa Alimentos e Territórios, financiado pela Iniciativa Amazônia+10.
🎯 Objetivos: Resgatar e multiplicar espécies alimentares tradicionais, fomentar bioeconomia indígena, promover segurança alimentar e reduzir doenças associadas à má alimentação.
⏳ Duração: 3 anos (2025-2028).
📌 Mito Nambikwara – O menino que virou roça
Entre os Nambikwara, povo indígena do noroeste de Mato Grosso, há uma antiga narrativa sobre um menino atraído pelo som sagrado das flautas. Conta-se que ele desapareceu e, no local onde esteve, seu corpo começou a se transformar em alimentos.
De cada parte, nasceram plantas cultivadas:
Sangue – urucum
Pupila – feijão-fava
Fígado – taioba
Testículo – cará
Perna – araruta
Espinha – rama de mandioca
Músculos – raiz da mandioca
Mãos – folhas da mandioca
Costelas – feijão-preto
Cabeça – cabaça
Miolos – tapioca
Lêndeas – sementes de fumo usadas na pajelança
O lugar onde isso aconteceu é considerado sagrado — a “casa da flauta” — e não pode ser desmatado ou queimado. A lenda, registrada por anciãos da etnia, simboliza a origem da roça e a relação de respeito com a terra e seus frutos.
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