Há 10 anos, descoberta sobre Zika em hospital da Ebserh mudou medicina perinatal
Observação clínica do Serviço de Medicina Fetal da MCO-UFBA foi o ponto de partida para identificar a relação entre o vírus Zika e casos de microcefalia no Brasil

Em julho de 2015, uma observação feita em uma sala de ultrassonografia da Maternidade Climério de Oliveira (MCO), da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e vinculada à Rede Ebserh, daria início a uma das mais importantes descobertas médicas da história recente do país. O médico Manoel Sarno, professor da UFBA e especialista em Medicina Fetal, percebeu um aumento súbito de casos de microcefalia em fetos — quatro diagnósticos em apenas duas semanas, um número considerado fora do esperado para o período .
As gestantes tinham algo em comum: episódios de exantema - erupção cutânea que pode vir acompanhada de febre, mal-estar e outros sintomas - no início da gravidez, um sintoma que, até então, parecia inofensivo. Ao analisar as imagens dos exames, Sarno identificou lesões cerebrais graves e incomuns, levantando, pela primeira vez, a hipótese de que um novo agente infeccioso com tropismo fetal poderia estar em circulação.
Nascia ali o primeiro alerta sobre a associação entre infecção materna e malformações congênitas que, meses depois, seria confirmada como causada pelo vírus Zika. Em todo o país, cerca de mil casos de síndrome congênita da Zika (conjunto de anomalias congênitas causadas pelo vírus) foram confirmados em 2015. Segundo a Secretaria de Saúde da Bahia ( Sesab ), 162 deles foram na Bahia, com nove óbitos. Em dez anos, o estado registrou 557 casos de crianças nascidas com microcefalia.
“Foi um momento de grande inquietação. A cada exame, a evidência clínica se fortalecia. Sabíamos que estávamos diante de algo inédito”, recorda Sarno .
A partir dessa suspeita, o pesquisador e sua equipe organizaram uma série de investigações com gestantes que apresentavam sintomas de Zika e fetos com microcefalia. Apesar das limitações laboratoriais iniciais, os achados clínicos e epidemiológicos foram decisivos para mobilizar a comunidade científica e o sistema de saúde. Em janeiro de 2016, a revista Science registrou internacionalmente a descoberta:
“Brazilian fetal medicine specialist Manoel Sarno first noticed in July that something was seriously wrong. In just 2 weeks , he diagnosed four cases of microcephaly … Sarno says he typically sees half -a- dozen cases in a year ” // “O especialista brasileiro em medicina fetal, Manoel Sarno, percebeu pela primeira vez, em julho, que algo estava seriamente errado. Em apenas 2 semanas, ele diagnosticou quatro casos de microcefalia... Sarno diz que normalmente atende meia dúzia de casos por ano”.
Pouco tempo depois, estudos conduzidos pelo grupo da UFBA, publicados em periódicos como PLoS Neglected Tropical Diseases (2016) e Ultrasound in Obstetrics and Gynecology (2017), confirmaram o nexo causal entre a infecção materna por Zika vírus e as malformações do sistema nervoso central. O Brasil se tornava, assim, o primeiro país do mundo a demonstrar que um arbovírus podia ser teratógeno, ou seja, qualquer agente que pode causar danos ao embrião ou feto durante a gravidez — um marco para a ciência global.
A MCO-UFBA teve papel decisivo nesse processo. Como centro de assistência, ensino e pesquisa, foi protagonista na geração de conhecimento e na formulação das respostas de saúde pública à epidemia, além de contribuir para o acompanhamento e a reabilitação de crianças com a síndrome congênita do Zika.
Dez anos depois, a experiência permanece como conhecimento sólido. “O episódio mostrou o poder da observação clínica e o valor das redes de colaboração científica. Grandes descobertas podem nascer do olhar atento diante do inesperado”, reflete Sarno .
O que começou com quatro casos em duas semanas se transformou em um legado para a ciência mundial e reafirmou o papel da medicina brasileira na vigilância de doenças emergentes e na defesa da vida desde o início da gestação.
Por Luiz Carlos Lima, com revisão de Ludmila Wanbergna
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