"O SUS sempre será projeto contra-hegemônico”, afirma ex-ministro Arthur Chioro
Durante seminário que celebrou os 35 anos da Lei nº 8.142/1990, Chioro defendeu o debate sobre reinvenção da participação social diante dos desafios do século XXI
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) realizou, na sexta-feira (12/12), em Brasília, o Seminário de Celebração dos 35 Anos da Lei nº 8.142/1990, marco fundamental da participação social e do controle social no Sistema Único de Saúde (SUS). Com o tema “O papel do Controle Social e o CNS na consolidação da democracia na Saúde”, o encontro reuniu ex-presidentes do Conselho, ex-ministros da Saúde, representantes do atual governo e o colegiado para debater sobre os desafios históricos e contemporâneos da defesa do direito à saúde no Brasil.
A terceira mesa do seminário, intitulada “Participação da comunidade na gestão do SUS: desafios até a 18ª Conferência Nacional de Saúde”, foi marcada por análises críticas e propositivas sobre o futuro do SUS e da democracia sanitária. Participaram do debate o ex-ministro da Saúde, Arthur Chioro (atual presidente da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), a chefa de gabinete do Ministério da Saúde, Eliane Cruz, além de uma mensagem em vídeo da ex-ministra Nísia Trindade. A mesa foi coordenada pela presidenta do CNS, Fernanda Magano, e pela conselheira nacional de saúde, Heliana Hemetério.
Ao cumprimentar todas as pessoas presentes, Fernanda Magano reforçou que “para além de toda a história e o legado do SUS, das vivências de todas as pessoas que ajudaram a construí-lo e da nossa responsabilidade de continuidade, que tenhamos sabedoria, discernimento, ação coletiva para continuar defendendo o SUS”.
Em sua intervenção, Arthur Chioro foi enfático ao afirmar que o SUS “sempre foi e sempre será um projeto contra-hegemônico”. Para ele, o sistema público de saúde brasileiro não é apenas um conjunto de políticas públicas, mas um projeto ético-político de sociedade, que se opõe a modelos excludentes e mercantilizados da saúde.
Segundo Chioro, nas últimas décadas, o SUS enfrentou diretamente o avanço do neoliberalismo, um projeto de mundo que “não cabe todos e todas”, que aprofunda desigualdades sociais, explora populações vulneráveis e promove o uso predatório dos recursos naturais. “O SUS da Constituição não é o mesmo SUS defendido por setores da extrema direita e por parte do Congresso. Há disputas históricas e políticas em curso”, alertou.
O ex-ministro lembrou que a própria Lei nº 8.142/1990 já nasce como um movimento de resistência do movimento sanitário, após os vetos do então presidente Fernando Collor a dispositivos centrais relacionados ao financiamento e ao controle social. “A lei garantiu que a população pudesse construir o SUS junto com o Estado, por meio da participação social”, destacou.
Subfinanciamento, teto de gastos e pandemia
A chefa de gabinete do Ministério da Saúde, Eliane Cruz, fez um resgate crítico do financiamento da saúde no Brasil, agravado pela Emenda Constitucional nº 95, conhecida como teto de gastos. Ao congelar os investimentos sociais por duas décadas, a medida aprofundou a asfixia financeira do sistema e comprometeu sua capacidade de resposta. Esse cenário de desfinanciamento foi determinante para as dificuldades enfrentadas pelo SUS às vésperas e durante a Pandemia de Covid-19, a maior crise sanitária dos últimos 100 anos.
Segundo a atual chefa de gabinete, “foi no cenário de uma das maiores crises sanitárias dos últimos 100 anos, a Pandemia de Covid-19, que essa experiência evidenciou tanto a força do SUS, quanto as consequências perversas da retirada de recursos da saúde pública”, lembrou.
Ainda assim, foi o SUS que garantiu atendimento à população, organizou a vigilância em saúde e conduziu uma das maiores campanhas de vacinação do mundo, evidenciando que, mesmo sob ataque e com recursos limitados, o sistema público de saúde é essencial para a proteção da vida e para a redução das desigualdades no Brasil.
18ª CNS: agenda estratégica para o futuro do SUS
Ao projetar o papel da 18ª Conferência Nacional de Saúde, Arthur Chioro e Eliane Cruz apontaram temas desafiadores centrais que precisam mobilizar a sociedade brasileira rumo a um SUS ajustado ao século XXI, considerando as transições epidemiológica, demográfica, nutricional e ambiental.
O ex-ministro destacou o rápido envelhecimento da população, o aumento das doenças crônicas e degenerativas, o crescimento da obesidade e do sobrepeso, além do impacto da indústria de ultraprocessados e dos agrotóxicos sobre a saúde. “O capitalismo explora essas vulnerabilidades de forma cruel”, afirmou.
Chioro também ressaltou a importância de fortalecer a rede de cuidados em saúde nos mais de 5.500 municípios brasileiros, respeitando as singularidades territoriais e regionais. Para ele, “não há política nacional de saúde eficaz sem considerar a diversidade do país”.
Eliane Cruz enfatizou a relação entre saúde e desigualdade social. “O SUS não resolverá sozinho o problema da desigualdade, mas ele tem papel central na produção da equidade, da integralidade e de uma sociedade mais justa”, disse.
Gestão, Trabalho em saúde e participação social
Entre os desafios estruturais, o ex-ministro apontou a necessidade de uma política nacional de gestão do trabalho e de educação em saúde, com valorização profissional, formação adequada e condições dignas de trabalho. “Não teremos o SUS que merecemos sem investir nas trabalhadoras e trabalhadores da saúde”, afirmou.
Chioro defendeu ainda a necessidade de repensar o Estado brasileiro, que, segundo ele, ainda “opera sob uma lógica administrativa herdada da ditadura, patrimonialista e excludente”. Nesse contexto, a participação social também precisa ser atualizada. “Como fazer controle social em um mundo atravessado pelas mídias digitais? Como reencantar a juventude e incluir a população idosa nesse processo?”, questionou.
A chefe de gabinete do Ministério da Saúde, Eliane Cruz, reforçou que a participação social é o grande diferencial do SUS em relação aos sistemas universais de saúde de outros países. Ela resgatou a trajetória histórica que levou às Leis nº 8.080 e 8.142, passando por resoluções do Conselho Nacional de Saúde e pela consolidação do planejamento e da gestão participativa do sistema.
“Elas são leis que versam sobre planejamento, gestão, financiamento e participação social. Não podemos abrir mão desse princípio fundante do SUS”, afirmou.
Eliane Cruz destacou o papel do CNS na formulação e fiscalização das políticas de saúde, reconhecendo, no entanto, os desafios enfrentados nas deliberações, muitas vezes atravessadas por pactuações interfederativas. Também chamou atenção para a necessidade de ampliar o financiamento da saúde, defendendo que a luta por recursos precisa ser compreendida pela sociedade.
Além disso, ressaltou a centralidade do debate sobre trabalho em saúde, pisos salariais e políticas de valorização profissional, bem como a urgência de tratar a saúde mental como prioridade cotidiana do SUS.
O seminário “O papel do Controle Social e o CNS na Consolidação da Democracia na Saúde”, reafirmou que o SUS é resultado da luta da sociedade brasileira e que o controle social é parte indissociável de sua construção.
Ao projetar a 18ª Conferência Nacional de Saúde como um novo momento de mobilização, o CNS ratificou a importância da participação social como condição fundamental para fortalecer o SUS da Constituição, enfrentar desigualdades e firmar a democracia no país.
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